A verdadeira polarização. Ou: Alguém meio fascista já é um fascista inteiro
Vamos conversar sobre a verdadeira polarização, não essa falsificada que tem servido ao reacionarismo ensaboado? A extrema-direita existe no Brasil e é forte. Não é o caso da extrema-esquerda, que existe, claro!, mas é fraca. Lula é um centrista. Logo, essa que apontam por aí é uma polarização "fake" — mero esforço para tentar juntar o centro, a direita e fatias da extrema-direita contra o líder petista. Que agentes políticos façam esse jogo, convenham, é parte do show. Mas é intelectualmente desonesto fingir que o governo ou mesmo o lulismo são, do ponto de vista ideológico, o oposto espelhado do bolsonarismo. Fosse assim, estariam usando o aparelho de Estado para promover a luta armada. Estão? O arcabouço fiscal seria a metralhadora??? A imprensa, infelizmente, é uma das divulgadoras dessa farsa. A real polarização é outra, e o inquérito do golpe o demonstra à farta: ela se dá entre o fascismo golpista e a democracia. Nessa polarização, o que seria o "centro moderado"? Vou responder. Mas vamos ter de caminhar um tanto.
CAMINHANDO...
"Uma coisa absurda essa história do golpe. Vai dar golpe com um general da reserva e quatro oficiais superiores? Pelo amor de Deus! Quem estava coordenando isso? Cadê a tropa? Cadê as Forças Armadas? Não fique botando chifre em cabeça de cavalo. (...) Golpe agora não se dá mais com tanque; agora, se dá com táxi. E parece que o sequestro não saiu porque não tinha táxi na hora. É uma piada essa PF do Alexandre de Moraes".
A delinquência acima foi dita por Jair Bolsonaro numa live transmitida, no sábado, no perfil do ex-ministro do Turismo Gilson Machado, o tal que finge ser sanfoneiro, numa barbearia em São Miguel dos Milagres, em Alagoas. O ex-presidente passava uns dias numa propriedade de Machado. A coisa tem lá a sua graça: Bolsonaro a falar mal de Moraes enquanto corta o cabelo — cujo estilo guarda bastante semelhança com certo austríaco do século passado — é o que a semiótica define como um "símbolo"...
A extrema-direita bolsonariana se fixa na tosquice da conspiração golpista que veio à luz com o objetivo de fixar a tese de que a falta de eficiência de um plano rudimentar anula a gravidade dos crimes cometidos. Notem que é o mesmo argumento que embasa a tese inconstitucional do projeto de lei da anistia aos criminosos do 8 de janeiro. O movimento daquele dia seria não mais do que uma revolta de indignados, portando exemplares da Bíblia e batons. O ato espetaculoso do tal "Tiü França" traduziria tão-somente o delírio de "alguém perturbado", e o "Punhal Verde e Amarelo", como quer o cliente do barbeiro, seria o "golpe do táxi".
Que o "capitão" indisciplinado, tachado de "mau militar" por Geisel, vomite indignidades, vá lá... Afinal, quando na ativa, manifestou a intenção de explodir bombas em unidades militares e fez de próprio punho um croqui da adutora do Guandu, no Rio, que intencionava mandar pelos ares em sinal de protesto. Ainda mais asqueroso é constatar que setores da imprensa e certo colunismo estão "costeando o alambrado", prestes a considerar não mais do que bagatela a trama macabra ora revelada pela Polícia Federal. A referida delinquência não se limita aos currais claramente identificáveis da extrema-direita.
VAMOS PENSAR
Um golpe militar bem-sucedido, com efeito, demanda a adesão de parte considerável, se não puder contar com a totalidade, das Forças Armadas. Não há dúvida nem controvérsia a respeito. Sem isso, a quartelada não se consuma. Ninguém é punido no Brasil por "desfechar ou desferir um golpe de Estado". Isso nem sequer é um tipo penal. A razão é simples: tivesse o movimento sido bem-sucedido, eu não estaria aqui a escrever, vigessem ainda as consequências do golpe.
O Artigo 359-M do Código Penal é claro:
"359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência."
O Título XII da Constituição pune os "crimes contra o estado democrático de direito". O Capítulo I se ocupa dos "crimes contra a soberania nacional", e o II, dos "crimes contra as instituições democráticas".
Prestem atenção, senhores "juristas" de fancaria e palpiteiros do caos: o Código Penal não pune os golpistas bem-sucedidos, até porque seria uma contradição inelutável, dada pelos próprios termos. Prevê a pena para os que TENTAM romper a ordem democrática, também no Artigo 359-L:
"Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência."
Assim, é mau-caratismo abjeto ou idiotia robusta essa conversa de que não se podem punir aqueles que "apenas tentaram" romper o estado de direito ou dar um golpe de estado, dado que, resta evidente, a lei pune justamente a tentativa. Reconheço, infelizmente, o risco de que os idiotas dominem o mundo não em razão de sua capacidade, mas do tamanho da sua grei, como observou Nelson Rodrigues. E, convenham, o rebanho dos velhacos também não é nada é desprezível.
MAS HOUVE "TENTATIVA"?
Li um artigo de um desses patifes que andam disfarçados de inquiridores das contradições do pensamento democrático -- nunca lhes ocorre apontar as indignidades dos reacionários (adivinhem que lado estão...) -- tentando alargar um inexistente hiato entre aqueles que atacaram as respectivas sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro e as figuras graúdas que, articuladas numa organização criminosa, tentaram o rompimento violento do estado de direito e a deposição do governo legitimamente eleito.
Não havia hiato nenhum. As mensagens trocadas pelo general Mário Fernandes com Mauro Cid e outros golpistas evidenciam que controlavam os acampamentos, os bloqueios nas estradas e até a "mobilização do agro". O ataque na Praça dos Três Poderes, com efeito, não era o principal objetivo da orquestração, como resta evidente. Era a última e desesperada cartada. Todo o resto, até ali, havia falhado.
As "tentativas" do Ministério da Defesa, por intermédio do agora indiciado general Paulo Sérgio Nogueira, de intimidar o TSE não buscavam fortalecer o sistema de votação; objetivavam vulnerar o tribunal, atacando a sua credibilidade e instilando dúvidas entre os eleitores, o que poderia, por óbvio, facilitar um eventual golpe antes da eleição.
A propósito: o então presidente da República liderou uma reunião no dia 5 de julho de 2022, em que se bate o martelo: a intervenção no processo aconteceria antes do pleito. O custo de uma ação posterior seria muito alto, com o que concordam Mário Fernandes — o do plano homicida de agora —, Augusto Heleno e o próprio Bolsonaro. A máquina do Estado era, pois, mobilizada para impedir a realização da eleição: tentativa de golpe de estado; tentativa de abolição do estado de direito; organização com propósito criminoso.
Vocês já conhecem, a esta altura, a sequência de eventos. Bolsonaro recebe Fernandes no dia 8 de dezembro de 2022; rompe o silêncio no dia 9 e anuncia que não deixará o poder, dando a entender que algo acontecerá; o general "kid preto" imprime o plano homicida no próprio Palácio do Planalto; o próprio presidente apresenta aos comandantes das Forças Armadas a minuta do golpe; faz-se a campanha para sequestrar Alexandre — sempre em conexão com os acampados — etc.
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Quero receberSe falharam, se foram incompetentes, bem, dizer o quê? Felizmente, não temos um Código Penal que só pune golpistas competentes. Até porque essa seria uma lei que já nasceria morta, não é? E estou certo de que os leitores dessa coluna não precisam que explique a razão.
MAS A COISA FOI ASSIM TÃO PERIGOSA?
Sim, vivemos em perigo. Estava convencido das virtudes de um golpe ninguém menos do que o então comandante da Marinha, Almir Garnier Santos. O autor do plano homicida era o número 2 da Secretaria-Geral da Presidência da República e atuava, na reta final, como ministro interino. Um agente federal da segurança do Lula candidato e depois do presidente eleito integrava a conspirata.
Um golpe de Estado sempre nasce como uma ação "putschista" — da palavra alemã "putsch": golpe. A propósito: embora a conspiração escorresse como línguas de esgoto a céu aberto em 1964, não houve, inicialmente, uma grande combinação de "todos os generais". A pólvora estava estocada e precisava de alguém que acendesse o estopim. O general Mourão Filho, que já havia se emporcalhado com o "Plano Cohen" (pesquisem), ofereceu-se para o serviço sujo. E o resto é conhecido.
ENCERRANDO...
Qualquer flerte com a impunidade, seja dos que tentaram tornar viável um golpe por meio do ataque às respectivas sedes dos Três Poderes, seja dos graúdos que se envolveram com várias ações golpistas implica vulnerar a própria democracia.
Não se trata, como dizem os idiotas imodestos ou o mau-caratismo militante, de aplicar uma sentença exagerada só para servir de exemplo e convencer pelo susto. Não se está a conceituar um novo crime, com pena também inédita, para punir o até então inaudito. Não! As tipificações já estão todas no Código Penal ou em leis já conhecidas.
Que valha a lei, inclusive para aquele senhor que cultiva aquele estranho corte de cabelo. O que cobre o seu cocuruto, obviamente não importa — ainda que a tal semelhança com aquele austríaco sempre incomode... O relevante e perigoso é o que vai dentro daquela cachola.
Qualquer concessão às suas perversas formulações — e isto vale para "o moderado" Tarcísio de Freitas, por exemplo — implica uma piscadela para conspirações golpistas, homicidas e liberticidas.
ENCERRO
Inexiste um meio do caminho, que seria o da moderação, entre o triunfo da democracia e o golpismo. Essa é a verdadeira "polarização" -- a outra, de que tanto se fala, é só uma fantasia imbecil. Até porque o suposto ponto intermediário entre o regime democrático e o golpismo seria alguém "meio fascista".
Isso não existe. Alguém "meio fascista" já é um fascista inteiro.
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