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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Aras pode tolerar o golpismo, mas quer prender quem lhe cobra que trabalhe?

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

05/12/2022 01h38

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Uma das coisas essenciais da vida é conservar o decoro. Trata-se da barreira mais eficiente contra o vexame. Demonstra autocontenção e cuidado no cumprimento das regras do jogo. O ato indecoroso, mesmo quando involuntário, tisna também as virtudes verdadeiras e seria capaz de aniquilar até a crença nos santos. É o respingo de molho na veste sacerdotal. Ou o resto de salada no dente do interlocutor que se esforça para "apertar no peito mais humanidades do que Cristo", como escreveu o poeta. Mesmo as prefigurações sublimes exigem certas precondições para a sua eficácia. Felizmente, costumamos saber pouco sobre a humanidade falível dos nossos ídolos. E tudo fica pior quando a perdição não cai da árvore dos acontecimentos, mas é uma escolha.

Pode não parecer, mas estou a falar de Augusto Aras, procurador-geral da República, como o título anuncia. Nem tudo o que emana da PGR é desastre, é verdade, mas com que facilidade seu titular expõe o colarinho a máculas e com que sem-cerimônia palavras frouxas brotam de sua repartição, submetendo-a ao descrédito, turvando-lhe a reputação, transformando-a em mero esbirro de um projeto malogrado de poder. Parece haver por ali uma espécie de lascívia da inação.

Lindôra Araújo, vice-procuradora-geral da República e braço direito de Aras, manifestou-se contra pedido feito pelo Ministério Público do Mato Grosso, encaminhado ao ministro Alexandre de Moraes, em favor da aplicação de multas aos arruaceiros que obstruem estradas no Estado e da apreensão de bens que servem às suas práticas criminosas. Com a óbvia concordância do superior hierárquico, Lindôra argumentou, ignorando o clamor dos fatos, que as forças policiais têm sido eficientes no trabalho de liberação das vias, sem a necessidade do que chamou "uso da força".

O pedido do MP estadual foi encaminhado a Moraes no âmbito de uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), partindo-se da evidência de que os bloqueios agridem direitos assegurados pela Constituição. Lindôra respondeu — e Moraes não precisa concordar com o tal despudor — que, a seu juízo, o Supremo nada tem a ver com o caso. Para ela, o pedido feito pela Procuradoria-Geral de Justiça de Mato Grosso não estaria adequado "à individualização de responsabilidades e aplicação de medidas coercitivas a pessoas físicas, discussão que escapa ao campo da fiscalização normativa abstrata reservado à Corte Suprema".

Até o mais indisciplinado dos estagiários que usasse a lógica com alguma destreza conseguiria demonstrar, sem nem precisar escarafunchar as leis, que o parecer de Lindôra-Aras emite um juízo sobre os atos que só seria aceitável, se aceitável fosse, depois da conclusão de um inquérito. Não parece à primeira vista, mas a dupla sustenta, com a falta de recato institucional de um Nero de filme B, que a Constituição não está sendo agredida nas vias obstruídas e às portas dos quartéis. Sob este mesmo argumento, a PGR jamais opôs um miserável óbice a quatro anos de discurso golpista de Bolsonaro. O ente do Estado que deve ser fiscal do cumprimento da lei se comporta como biscateiro do vale-tudo.

DENÚNCIA
Mas não pensem que a dupla é sempre assim, vamos dizer, laxista e permissiva. Se atos contra a democracia e o Estado de direito, que podem ser enquadrados até na Lei Antiterror, não açulam o senso de justiça do titular da PGR, as palavras gravosas que lhe foram dirigidas por brasileiros nas ruas de Paris merecem, a seu juízo, punição. E na sua expressão mais severa.

Deixem que diga antes de continuar. Sou absolutamente contrário ao assédio a qualquer pessoa em ambientes públicos, seja ou não autoridade, com o intuito de constrangê-la, intimidá-la, submetê-la ao enxovalho. Entendo que não estamos diante de uma das modalidades dos crimes contra a honra, tipificados no Código Penal: calúnia, difamação e injúria. Tal assédio há de ser um delito específico, e a veiculação da agressão nas redes sociais deve constituir agravante severo. Eis uma matéria urgente para o Congresso.

Em abril, Aras passeava, de férias, pelas ruas de Paris. Um grupo de brasileiros o interpelou, filmando a ação. Diz uma voz masculina:
"E aí, procurador? Dar rolezinho em Paris é legal. E abrir processo, procurador? Ei, vamos lá investigar, procurador? Ou vai continuar engavetando aí? Ei, vamos lá investigar, fazer o seu trabalho? Funcionário público, funcionário público... E aí, procurador, vai fazer o seu trabalho?"

Um outro acrescenta:
"Vamos lá investigar?"

Volta o primeiro:
"Bolsolão do MEC, vamos investigar pastor fazendo reunião, vamos investigar lá Bolsonaro gastando milhões em Viagra no Exército? Cadê a investigação, procurador? Cadê a investigação, procurador? Aqui em Paris, não tem nada para investigar, não. Tem de procurar lá em Brasília, procurador! Tudo por uma vaguinha no STF, né? Tudo por uma vaguinha."

O possível dono da segunda voz emenda:
"Servicinho pífio!"

E se ouve ao fundo: "Filho da puta!" Uma voz feminina repete o xingamento. E o vídeo termina com um novo "servicinho pífio!"

REAÇÃO
A PGR, que se quedou inerme diante dos sucessivos e reiterados ataques de Bolsonaro ao estado de direito, classificando-os como liberdade de expressão; que reage com lassidão a bloqueios que abrigam práticas verdadeiramente terroristas; que não detectou nenhum comportamento vicioso do mandatário no período mais agudo de combate à Covid-19... Bem, essa mesma PGR entendeu que é o caso de punir aqueles brasileiros que abordaram Aras em Paris. Com a toga deliberadamente empapada de gordura e os dentes semeados de hortaliças, os glutões da ordem legal resolveram oferecer denúncia contra três pessoas do grupo.

Embora a PF tenha aberto inquérito, a pedido da PGR, por delitos contra a honra -- o "filho da puta" pode caracterizar injúria" --, Lindôra teve a desfaçatez de acusar o trio de "tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito". Constranjo-me até de escrever tal despropósito. Dispõe o Artigo 359-L do Código Penal:
"Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência."

Mas onde está a violência ou a grave ameaça? Em que momento as pessoas envolvidas no episódio pregaram a abolição do estado de direito? Se a transcrição não lhes basta para constatar o absurdo da acusação, assistam ao vídeo. É evidente que estamos diante de uma disposição para o confronto que não encontra amparo na realidade factual. Com que então a vice-procuradora-geral entende que o golpismo não constitui embaraços à ordem democrática, mas o convite, ainda que com palavras um tanto rudes, a que o procurador-geral se comporte, enfim, como procurador-geral se revela uma grave ameaça?

Não que eu esteja surpreso: quem não sabe reconhecer a diferença entre crime e liberdade de expressão está fadado a não reconhecer a diferença entre liberdade de expressão e crime.

CONCLUO
Em sua sanha, a PGR está a nos dizer que o ataque organizado e deliberado às instituições é matéria menos gravosa do que um simples protesto contra as atitudes do titular do órgão. Assim, Aras confunde a sua pantomima pessoal com os destinos da pátria, mas tolera que a pátria, ela-mesma, seja vilipendiada por golpistas.

O decoro é a mais eficiente barreira contra o vexame. E se pode erguê-la com qualquer dos sinônimos: pundonor, dignidade, decência. Se, no entanto, não sobrevivem nem mesmo ao acidente que mancha de molho um colarinho imaculado ou larga um resto de salada nos dentes, o que não dizer da desonra destemida, na sua expressão mais crua?