Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Lula na China, Lavrov no Brasil e os nostálgicos do altar do Deus de Trump
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A imprensa brasileira foi muito eloquente em informar o incômodo dos EUA com as declarações do presidente Lula na China sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia. Ninguém falou em "on", que é quando a gente sabe quem está dando a declaração. Sei lá... Talvez por ser, afinal, a fala dos representantes do Grande Império do Norte, uma censura anônima baste para mandar o devido recado aos nativos. Lula assinou 15 acordos na China. Contemplam do agronegócio à engenharia de satélites. Os investimentos, por sua vez, podem chegar a R$ 50 bilhões.
Mas quê... Há até quem ache que o presidente estaria disposto a trocar o mundo "unipolar" "duzamericânu" pela unipolaridade chinesa... "UNIPOLARIDADE CHINESA?" Essa gente comeu aquilo que Elon Musk costuma mandar como resposta automática quando o Twitter recebe alguma indagação? É mesmo o fundo do poço. Mas não é Lula quem está lá. A propósito: os protocolos dos 15 acordos estão aqui. O agro, mais uma vez, tem motivos para se congratular com o petista. A ala mais reacionária e barulhenta do setor, no entanto, prefere verter bile porque João Pedro Stedile integrava a comitiva. Achando pouco, pede a prisão do líder do MST por declarações absolutamente respaldadas pela Constituição. Sigamos.
A visita foi ainda ofuscada pelo barulho por causa da mutreta de importações via e-commerce. Que sabotam, na prática, o sistema tributário brasileiro. A extrema-direita, tendo setores da imprensa como megafones, é um hospício. Enquanto acusa Lula de se transformar em mero porta-voz dos interesses chineses — e russos, claro! —, o que é mentira comprovada, faz, na prática, a defesa de gigantes... chinesas que exercem uma relação predatória contra as empresas que atuam regularmente no Brasil. "Ah, mas houve erro de comunicação". Fato. De informação também. Lembro sempre: o estrago provocado por quatro anos de bolsonarismo não se limitou às instituições e às políticas públicas. O dano provocado no jornalismo não deve ser subestimado.
AS DECLARAÇÕES
E quais declarações de Lula levaram para as manchetes os "offs" -- um novo umbral que foi cruzado -- da diplomacia americana? Nada que Lula já não tenha dito, note-se, e dotado de absoluta razão prática. Mas é claro que assumem ares de escândalo num país em que falas do secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, são repetidas por "pensadores" sem aspas nem crédito. Vamos ver.
Na China, afirmou o brasileiro:
"É preciso que os EUA parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz. É preciso que a União Europeia comece a falar em paz, para a gente poder convencer [Vladimir] Putin e [Volodymyr] Zelensky que a paz interessa a todo mundo e que a guerra, por enquanto, só está interessando aos dois."
Que absurdo, não é mesmo?
Em Abu Dhabi, nos Emirados, voltou ao tema:
"A construção da guerra será mais fácil que a saída da guerra. Porque a decisão da guerra foi tomada por dois países. E agora nós estamos tentando construir um grupo de países que não têm nenhum envolvimento com a guerra, que não querem a guerra, que desejam construir paz no mundo, para conversarmos tanto com a Rússia quanto com a Ucrânia".
Já trato do mérito. Antes, algumas lembranças. No dia 23 de fevereiro, o Brasil votou na ONU a favor da Resolução que exigia a retirada das tropas russas da Ucrânia. O texto defende a "integridade territorial do país", cobrando de Moscou que "retire imediata, completa e incondicionalmente todas as suas forças militares do território da Ucrânia dentro de suas fronteiras internacionalmente reconhecidas". Quem determinou que fosse esse o voto do Brasil? Lula.
O brasileiro, no entanto, defende que se crie um grupo de países para negociar a paz, e esse é, para os porta-vozes brasucas da declinante unipolaridade dos EUA seu grande pecado. Insista-se: no fórum que conta, o Brasil se posicionou contra a Rússia. Mas isso não deve impedir um chefe de Estado de buscar uma saída. "Ah, inexiste saída que não seja a devolução da Crimeia e das regiões ocupadas desde o ano passado..." Bem, em sendo assim, então que o mundo se prepare para uma guerra prolongada — e a questão é saber a quem interessa — ou para algo pior. A ameaça de um conflito nuclear é real.
A HISTÓRIA QUE HÁ E A QUE NÃO HOUVE
A Rússia não sairá da Criméia. Ainda que um golpe derrube Vladimir Putin (improvável); que ele venha a perder eleições (difícil naquela quase-ditadura) ou que morra de alguma doença (imponderável), o sucessor que se atrevesse a devolver a região teria pouca chance de se manter no Kremlin. Lula talvez tenha errado quando especulou em voz alta o que sabem todos os governantes do mundo: a menos que os russos sofram uma derrota humilhante -- e grandes sortilégios podem colher o planeta antes que isso aconteça --, deve-se começar a conversar dando a Criméia como russa. E russa ela era antes de Krushev, de forma artificial, decidir que faria parte da Ucrânia. Como, afinal, era tudo União Soviética, não houve crise.
Não deixa de ser curioso — e supinamente estúpido — que "expertos" (com "x") brasileiros exijam do chefe de Estado de seu país que se alinhe com o entendimento que têm os EUA das questões ucraniana e taiwanesa. A propósito: a Crimeia, de fato, era russa e passou a ser ucraniana por um artificialismo; Taiwan, no entanto, nunca deixou de ser... chinesa.
"Ah, mas Lula erra quando diz que Zelensky também é responsável pela guerra". Bem, meus caros, a diplomacia americana e seus "think-tanks" são muito influentes em tentar dissociar a invasão russa da expansão da Otan. Com a dissolução da União Soviética, a aliança militar foi se expandindo pelos antigos países da Cortina de Ferro, ganhando a adesão de ex-repúblicas da extinta URSS. O inimigo imediato, obviamente, é a Rússia. Desprezo a figura de Putin. Representa tudo aquilo que repudio em política. Mas me pergunto se outro governante russo em seu lugar faria outra coisa. Vocês já imaginaram a Rússia armando o México?
O truque frequente dos que repetem os Departamento de Estado dos Estados Unidos como se fosse um pensamento original é afirmar que o avanço da Otan é mera desculpa e que Putin tentaria tomar a Ucrânia de qualquer jeito. Essa gente tem uma vocação fanática por contar a história que não houve. Fico com a história que há. A Otan cometeu o erro de isolar a Rússia e a empurra para o colo da China, ao mesmo tempo em que tenta ganhar parceiros na sua luta contra Pequim. "Ah, mas isso está fazendo a aliança militar avançar ainda mais, vejam a Finlândia e a Suécia". Mas esse é um argumento a favor da tese, não contrário.
DE VOLTA A LULA
Aí Lula vai à China para tratar de interesses brasileiros com seu principal parceiro comercial e ousa falar sobre a guerra Rússia-Ucrânia, atrevendo-se a pronunciar o nome "paz". E então se diz: "Isso corresponde a fazer o jogo dos chineses e dos russos". Digamos que assim fosse... E investir na guerra, defendendo uma solução que solução não é porque se sabe que não vai acontecer? Atende aos interesses de quem? Nunca se esqueçam: na ONU, sob o governo Lula, o Brasil votou contra a Rússia. Mas se recusa a ser mero caudatário das decisões tomadas por EUA e parte da Europa.
Para lembrar: o Itamaraty se juntou a 141 países nesse caso. Sete votaram contra, e 32 se abstiveram. Contam-se, entre esses, China e Índia — um terço da humanidade. Nos Brics, diga-se, o Brasil foi o único voto favorável: Rússia, claro!, foi contra, e África do Sul também se absteve.
Ademais, deveria o Brasil ser mera correia de transmissão dos interesses dos EUA? Deveria ignorar que o alvo americano de longo prazo não é a Rússia, mas a China, seu principal oponente, e parceiro, comercial? E aí, para meu espanto, houve quem mostrasse desagrado por aqui porque Lula reiterou o óbvio: só existe uma China. Taiwan tem, por acaso, representação na ONU? Washington reconhece a ilha como país independente? NÃO!
Fim do conflito? Seria o melhor. Mas é pouco provável que venha a acontecer um dia — a não ser por uma hecatombe que colheria bem mais do que Ucrânia e Rússia. A guerra da Coreia, oficialmente, não acabou até hoje. Tem-se ali um armistício que vigora desde 27 de julho de 1953. A gente sabe bem qual seria a alternativa. Talvez Lula deva trocar de vocábulo: ARMISTÍCIO! Ainda que com outro status (as duas Coreias têm assento na ONU), o congelamento sem solução do conflito vale para China-Taiwan. Mas adivinhem quem sente especial prazer em provocar Pequim...
"Ah, mas Lula precisa falar em uma moeda comum para as negociações dos Brics?" Precisa. É estúpido afirmar que isso é parte de uma investida do Brasil contra os EUA. As nações do bloco concentram 42% da população mundial, 26% do PIB do mundo e respondem por 20% do fluxo comercial. Afirmar, como li ontem, que esse é um caminho que isola o país do resto do mundo é só ideologia barata e biliosa. É coisa de sabujice bananeira disfarçada de fino pensamento estratégico.
FINALMENTE, LAVROV
Nesta segunda, Sergey Lavrov, chanceler russo, tem reunião no Itamaraty e deve se encontrar com Lula. Um tonto escreveu em algum lugar que é mais uma "provocação" do presidente brasileiro a Washington, depois das coisas que disse na China e nos Emirados Árabes.
Tenham paciência! Entrevistei o presidente no dia 2 de março. Cheguei a Brasília no dia 1º e fui ao Itamaraty. Soube, então, que Mauro Viera, ministro das Relações Exteriores, encontrara-se havia pouco com Lavrov, na Índia, no âmbito do G-20, e acertara a data de sua visita ao Brasil: 17 de abril.
Esperavam o quê? Que o Brasil se negasse a receber o chanceler da Rússia, país com o qual mantém relações diplomáticas? Será mesmo que nosso papel é reproduzir os boletins do Departamento de Estado dos EUA? Não se trata de hostilidade a Washington, mas de soberania. A vinda de Lavrov estava agendada desde o dia 1ª de março e, por óbvio, antecede a visita de Lula à China. Deixem de ser mais realistas do que o rei. Ou mais americanistas do que os americanos. Ademais, quando Biden ou a diplomacia do Grande Imperador do Norte quiserem falar com o Brasil, certamente dispõem dos caminhos adequados, não?
Se o país buscar um lugar na ordem mundial para tratar dos próprios interesses representar uma afronta aos EUA, então se está a fazer uma escolha. E não é pelo Brasil. Há gente com saudade de Ernesto Araújo, aquele que se ajoelhava "no altar do Deus de Donald Trump"?