Bolsonaro inaugura no país um novo tipo penal: o golpe de estado continuado
Em tempos em que "narrativa" virou sinônimo ou de "versão do adversário" ou de "mentira", tenho apelado às virtudes curativas do dicionário.
Tomemos as acepções do verbo "tentar" e do substantivo "tentativa" no Houaiss:
Tentar
verbo
1 t.d. empregar meios para conseguir (algo); diligenciar, intenta
2 t.d. esforçar-se por; buscar, procurar
3 t.d. pôr em execução; empreender, realizar
4 t.d. pôr em experiência; provar, testar
5 t.d. exercer (uma prática); experimentar, exercitar
6 t.d. despertar vontade (em alguém) para fazer alguma coisa
7 t.d. instigar, induzir ou seduzir para o mal; atentar
8 pron. deixar-se seduzir; apetecer muito alguma coisa; estar próximo a ceder à tentação
9 pron. expor-se à boa ou má sorte; arriscar-se, aventurar-se
10 t.d. procurar conhecer; sondar, tentear
11 t.d.; jur pôr em juízo; intentar, propor, instaurar
Tentativa
substantivo feminino
Ato ou efeito de tentar; tentação
1 ação que tem por fim pôr em execução um projeto ou uma ideia
2 teste experimental; ensaio, prova
3 delito tentado
Agora vamos lembrar o que dispõem os Artigos 359-L e 359-M do Código Penal:
Abolição violenta do Estado Democrático de Direito
Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Golpe de Estado
Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.
Eu não tenho dúvida de que Jair Bolsonaro tentava dar um golpe de Estado no Brasil desde os dois discursos que fez no dia 1º de janeiro de 2019. Antes mesmo da eleição de 2018, diga-se, falando sem seu nome, Eduardo, o filho deputado, ameaçou o Supremo numa palestra:
"O pessoal até brinca lá. Se você quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é desmerecendo o soldado e o cabo, não. O que é o STF, cara? Tipo, tira o poder da caneta de um ministro do STF, o que ele é na rua? Se você prender um ministro do STF, você acha que vai ter uma manifestação popular a favor dos ministros?"
Tão logo a declaração veio a público, o ministro Gilmar Mendes comentou:
"Ali se fala que, com um cabo e um soldado, se fecha o tribunal. Quando se faz isso, você já fechou algo mais importante, que é a própria Constituição. Você já rasgou a Constituição. Para fechar tribunal, você precisa rasgar a Constituição. Agora, é bom lembrar que nem os militares [na ditadura] fecharam o Supremo Tribunal Federal".
Numa audiência na Câmara no dia 12 de julho daquele ano, o mesmo Eduardo defendeu que seu pai, se eleito, aumentasse o número e ministros do Supremo. Para quê? Ora, ele explicou, no melhor estilo Chávez ou Daniel Ortega:
"Para equilibrar o jogo, porque, com esse STF, caso o próximo presidente venha a tomar medidas e aprovar projetos que sejam contrários ao gosto desse Supremo Tribunal Federal, eles vão declarar inconstitucional".
Achou que não tinha sido suficientemente ameaçador e reforçou:
"Aqui, a gente não vai se dobrar a eles não. Eu quero ver é alguém reclamar quando tiver num momento de ruptura, mais doloroso do que colocar dez ministros a mais na Suprema Corte. Se esse momento chegar, eu quero ver quem é que vai pra rua fazer manifestação pelo STF. Quero ver quem é vai dizer 'ministro x, volta, saudades'".
Reitere-se: eles nem haviam chegado ao poder ainda. Estávamos a quase três meses da eleição. A ideia, portanto, nunca foi respeitar as instituições. Tampouco Bolsonaro, como evidenciou na posse, se propunha a ser o presidente de todos os brasileiros.
A esquerda ganhou a eleição no Uruguai. Vejam lá qual foi a comportamento de Lacalle Pou, o presidente conservador que viu seu candidato, Alvaro Delgado, perder por uma pequena diferença para Yamandú Orsi. Todos, vitoriosos e derrotados, falaram imediatamente em unir o país.
No dia 1º de janeiro de 2019, ao discursar para milhares de pessoas que acompanhavam a solenidade de passagem da faixa, sabendo que era acompanhado por milhões em suas casas, Bolsonaro foi o primeiro presidente da história que falou em derramamento de sangue no dia da posse:
"Essa é a nossa bandeira, que jamais será vermelha. Só será vermelha se for preciso o nosso sangue para mantê-la verde e amarela."
AS ACEPÇÕES DE "TENTAR"
Bolsonaro tentou, desde sempre, romper o estado de direito e desfechar um golpe de estado. É da sua natureza. Tentou como? Ora, "esforçou-se por", buscou, procurou, instigou", induziu"...
Mas faltavam as evidências mais claras de que havia "empregado meios para conseguir", "diligenciado", "esforçado-se por", "posto em execução", "testado", "exercido (uma prática)", "experimentado", "exercitado"...
O inquérito do golpe coloca o ex-presidente na cena dos crimes. As falas dos comparsas da gangue, dos membros que integraram a organização criminosa, não deixam a menor dúvida sobre as ações empreendidas para, nesta ordem: impedir a realização da eleição; impedir a posse do eleito e, depois, dado o insucesso de tais intentos, provocar o caos para evocar, então, as forças da ordem — no caso, uma intervenção militar.
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Quero receberNunca houve a intenção de respeitar as instituições. A ordem era considerada uma inimiga a ser vencida. E só por isso ele discursou em frente ao QG do Exército, num ato golpista, no dia 19 de abril de 2020. Ou instigou seus ministros para o liberou-geral das armas, com vistas a uma possível guerra civil, como fez numa reunião ministerial em 22 de abril desse mesmo ano. Ou anunciou, no 7 de setembro de 2021, que não mais obedeceria a decisões do Supremo.
Ontem, falando com a imprensa, fez cara de cachorro pidão e admitiu o risco de ser preso. Naquele dia 7, o tom era outro:
"Dizer a esse indivíduo [Alexandre de Moraes] que ele tem tempo ainda para se redimir. Tem tempo ainda para arquivar seus inquéritos. Ou melhor, acabou o tempo dele. Sai, Alexandre de Moraes. Deixa de ser canalha".
Ou ainda:
"E dizer àqueles que querem me tornar inelegível em Brasília: só Deus me tira de lá [da Presidência]. Dizer aos canalhas que nunca serei preso".
Foi tirado pelo povo, não por Deus.
Está inelegível.
E será preso.
CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
No dia 9 de dezembro de 2022, depois de uma conversa no dia anterior com o general Mário Fernandes, o "kid preto" mais exaltado, o então presidente rompeu o silêncio e caiu nos braços na galera nos jardins do Palácio da Alvorada:
"Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade. Estão esticando a corda. Faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse 'qualquer coisa' é o que está na nossa Constituição, na democracia e no nosso direito de ir e vir. Pode confiar na gente. Vocês, lá atrás, me deram esse voto de confiança. Enquanto vivo eu for, enquanto eu for presidente, só Deus me tira daqui. Eu estarei com vocês. (...) Não abriremos mão desse poder que vocês nos deram por ocasião das eleições de 2018".
Fazia de conta que a eleição de 2022 não tinha existido.
A ridicularia das articulações — ou desarticulações — golpistas não é sinônimo de irrelevância. Muita gente não se dá conta de quão absurda é a situação de um golpe de estado malograr não porque o presidente conteve militares golpistas, mas porque militares legalistas contiveram o presidente golpista.
CONCLUO
Você quer se livrar, leitor, do "declaracionismo" que muitas vezes toma a imprensa? "Especialista Fulano diz que houve tentativa de golpe; já Especialista Beltrano acha que não..". Há um modo seguro de formar seu juízo, depois de ler e ouvir as maquinações de Bolsonaro, dos "kids pretos" e congêneres: vá ao dicionário e busque o sentido do verbo "tentar". Em seguida, leia os artigos pertinentes do Código Penal: 359-L e 359-M (transcritos acima). Seus problemas acabaram.
Feito isso, você há de constatar que Bolsonaro inventou um novo tipo penal: o "golpe de estado continuado", próprio de quem vive em continuado estado de golpe.
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