Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Pós-arcabouço, o surto reacionário da Câmara. Governo teria como impedi-lo?
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A aprovação do arcabouço fiscal é, inequivocamente, uma vitória do governo Lula. Ainda que o texto tenha sido alterado pelo relator, as mudanças foram feitas de comum acordo com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad — e, por sua vez, o conjunto conta com o apoio de Lula. "Apoio", nesse caso, não quer dizer, necessariamente, "contentamento". Mas o texto final é também o do governo. Lá estão 66 dos 68 votos do PT — houve duas ausências. Dado o terrorismo que fizeram "Uzmercáduz", convenham, o resultado final está bem acima do esperado. Fernando Haddad está conseguindo transitar com desenvoltura nos círculos do inferno. Arthur Lira (PP-AL) não chega a ser o seu Virgílio — afinal, só é guia de si mesmo —, mas, ao menos, não o empurra para a fogueira. A aprovação do arcabouço, que não deve enfrentar percalços nem no Senado, não quer dizer, e o próprio Lira deixou isto claro, que o governo tenha base para levar adiante uma agenda, empreguemos a palavra, "progressista". Os brasileiros elegeram um presidente de centro-esquerda e um Congresso majoritariamente de direita, com uma fatia expressiva de extrema-direita. E essa maioria está fazendo valer a sua vontade.
Se, na questão fiscal, o governo conseguiu chegar a um texto, vamos dizer, centrista, atraindo votos também da direita — mas não da extrema-direita e do extremo-colunismo-de-economia —, há dificuldades evidentes em outras áreas. As mudanças feitas pelo deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL), relator da MP que define a estrutura dos ministérios, por exemplo, desfigura a pasta do Meio Ambiente. A ministra Marina Silva está certa em botar a boca no trombone.
A pasta perde o Sinisa (Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico), o Sinir (Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos), o Singreh (Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos), a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) e o CAR (Cadastro Ambiental Rural). Assim, de cambulhada. A Comissão Mista do Congresso já aprovou a mudança. Aqui e ali se acusa o Planalto de ter feito vista grossa. A questão: caso quisesse se opor, teria como fazê-lo? Também o Ministério dos Povos Indígenas, no desenho de Isnaldo, deixa de se ocupar da Funai e da demarcação de terras, atribuição que passa para o Ministério da Justiça.
MARCO TEMPORAL
Na noite desta quarta, note-se, por 324 votos a 121, a Câmara aprovou o regime de urgência para o projeto que estabelece a Constituição de 1988 como o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. É uma agressão aos parágrafos 1º e 2º do Artigo 231 da Constituição. Lá se lê:
"§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. "
O marco temporal, por si, é uma aberração porque inexiste o pressuposto, por óbvio, de que, no ano de promulgação da Carta, todos os índios já estavam em seu lugar, ainda que enfrentando litígios. A federação PT- PC do B- PV orientou o voto contrário à urgência, mas Rubens Junior (PT-MA), falando como líder do governo, liberou a base governista. E se não liberasse? A derrota viria de qualquer modo.
CÓDIGO FLORESTAL
Não acabou. A já combalida Mata Atlântica está prestes a sofrer mais um golpe. Uma Medida Provisória ainda do governo Bolsonaro adiava o prazo para adesão de proprietárias de terra ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). Na Câmara, meteu-se no texto uma coleção de jabutis, a saber:
- Supressão de vegetação local em caso de implantação de linhas de transmissão de energia elétrica, gasoduto ou sistemas de abastecimento público de água, sem necessidade de estudo prévio;
- Dispensa a obrigatoriedade de zona de amortecimento e corredores ecológicos em unidades de conservação quando estiveram situadas em áreas urbanas;
- Dispensa de consulta a conselhos estaduais e municipais de meio ambiente para uso do solo em margens de rios e lagos.
O Senado havia suprimido essas claras agressões ao Código Florestal, mas as alterações foram rejeitadas pela Câmara por 364 votos a 66. E qual foi a orientação do governo nesse caso? Em favor da "flexibilização". Nada menos de 35 deputados do PT votaram a favor. Apenas 14 se opuseram. É a prática de se juntar ao inimigo para evitar uma derrota. Se é que me entendem...
MARINA, A PETROBRAS E A FOZ DO AMAZONAS
E, como resta evidente, faltou coordenação no caso da prospecção de petróleo na Foz do Amazonas. Por ora, a ministra Marina Silva consegue impor a força da lei. Ocorre que ela, já alvejada pela lambança na MP da reestruturação dos ministérios, passou a ser vista, até em certas áreas do governo, como aquela que cria empecilhos ao trabalho da Petrobras.
A ministra falou ontem na Comissão do Meio Ambiente da Câmara. Deixou claro não se opor, em princípio, à exploração do petróleo, mas destacou que existem marcos técnicos, que precisam ser respeitados. Um novo pedido de licença encaminhado pela Petrobras, afirmou, pode levar até dois anos e meio, dados os óbices levantados pelo Ibama.
O QUE É VITAL E O QUE DESFIGURA
O chefe do Executivo tem de saber a diferença entre o que inviabiliza o seu governo e o que pode criar severas dificuldades e até mesmo desfigurar a sua gestão. Tudo é ruim, mas uma das coisas é pior.
Se Lula não conseguisse aprovar o arcabouço fiscal, não haveria amanhã. A crise seria certa, e incerta seria apenas a sua dinâmica. Assim, ter o PLC como prioridade era a escolha óbvia. Dá-se de barato que, com um mercado, em princípio, hostil, uma extrema-direita barulhenta e o extremo-colunismo fustigando a proposta, não haveria chance de aprová-la sem a adesão ativa de Arthur Lira.
Ocorre que isso tem um preço. As coisas que se narram neste texto não foram combinadas, como numa conspiração. Um Congresso entre direitista e reacionário quer, afinal, um Ministério do Meio Ambiente fraco. Também vai tentar pôr um fim à demarcação de terras indígenas. E vê com maus olhos a conservação de florestas. No caso do petróleo, soma-se a isso tudo o viés, digamos, "produtivista" de algumas lideranças de esquerda. Pronto! A lambança está feita.
Em certa medida, quem nos legou essa realidade foi mesmo o eleitor: elegeu um presidente progressista e um Congresso entre conservador e reacionário. Apontar o dedo contra o governo? Será? Exceção feita ao caso da Petrobras — em que vejo, sim, inabilidade —, pergunto: ele pode fazer alguma coisa?
ENCERRO
Isso tudo que aqui se relata abala um dos pilares do governo Lula aos olhos do mundo: a questão ambiental. É fundamental para o futuro do Brasil, por exemplo, o acordo Mercosul-União Europeia. Nós sabemos quanto nos custou o agrotrogloditismo de Jair Bolsonaro. Lula, é claro!, não dirá as barbaridades que dizia o ogro. Mas é importante que o país que ele preside não as pratique, ainda que à sua revelia.
Sou favorável ao semipresidencialismo à moda portuguesa — e, pois, às claras. Esse que temos existe na informalidade. Fatias do governo foram, na prática, sequestradas pelo Congresso. Então, que venha a ter também a responsabilidade de governar, arcando com as consequências de suas escolhas.
Esse ataque concertado à agenda civilizatória não tem custo político nenhum a seus protagonistas. Afinal, não governam. Veem o Parlamento como um cartório, em que atuam como despachantes do interesse de seus patrocinadores. Mas o custo ao país pode ser gigantesco.
Ah, em tempo: entendo que, sem esforço hermenêutico nenhum, o marco temporal para a demarcação das terras indígenas é escancaradamente inconstitucional. E, com algum esforço, mas não muito, a agressão à Mata Atlântica também. Um Congresso hipertrofiado, em que muitos atuam como lobistas, acaba provocando a hipertrofia necessária: a da Corte que trata dos direitos fundamentais.
Já que o Congresso governa, que arque, então, com o custo de fazê-lo. Mas isso é matéria para outros artigos.