Reinaldo Azevedo

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Opinião

Ataque terrorista do Hamas mantém minueto de extremistas em banho de sangue

Só há uma saída para a chamada questão israelo-palestina: um acordo para a criação de dois estados. A resposta, muito fácil, tem-se mostrado impossível. O Hamas não quer a paz porque seu poder depende da guerra. O atual governo de Israel — e, infelizmente, parte considerável da sociedade que lhe dá votos — também não quer porque seu poder... depende da guerra. São duelistas que se excluem e se justificam. Há uma espécie de instância abstrata em que os extremos concordam em fornecer corpos dos seus ao outro lado para manter a sua metafísica dos mártires. Assim são as coisas. Mas é bom tomar cuidado nesta hora.

Hamas quer dizer "Movimento de Resistência Islâmica". Tal "resistência" se dá por intermédio, entre outras práticas odientas, do terrorismo. Comanda, ademais, uma tirania sanguinolenta em Gaza, de que os próprios palestinos são vítimas. Perguntem às pessoas suspeitas de vínculos com o Fatah, a corrente a que pertence Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina.

Trechos do estatuto de fundação do movimento indicam a sua real disposição para qualquer conversa razoável sobre paz. Vamos ler:
"Israel existirá e continuar existindo até que o islã o faça desaparecer, como fez desaparecer todos aqueles que existiram anteriormente a ele (segundo palavras do mártir Imã Hassan Al Banna, com a graça de Alá).
- O Movimento de Resistência Islâmica é um elo da corrente da jihad contra a invasão sionista.
- O Movimento de Resistência Islâmica sustenta que a Palestina é um território de Waqf (legado hereditário) para todas as gerações de muçulmanos, até o dia da ressurreição".

Um dos artigos trata, especificamente, das iniciativas em favor da paz:
"As iniciativas, as assim chamadas soluções pacíficas, e conferências internacionais para resolver o problema palestino se acham em contradição com os princípios do Movimento de Resistência Islâmica, pois ceder uma parte da Palestina é negligenciar parte da fé islâmica. O nacionalismo do Movimento de Resistência Islâmica é parte da fé (islâmica). É à luz desse princípio que seus membros são educados e lutam a jihad (Guerra Santa) a fim de erguer a bandeira de Alá sobre a pátria."

A essa passagem se segue uma citação do Corão que, distorcida para servir à causa, não deixa espaço para quem diverge dos métodos da milícia:
"E Alá tem total controle sobre Seus feitos; mas muita gente não sabe." (Alcorão 12-21)

Vale dizer: Alá controla tudo; e a milícia é a legítima intérprete de Sua vontade; donde se conclui que se opor às suas práticas corresponde a se opor a Deus. Como reação a essa transgressão, então, tudo é permitido.

MUDANÇA, MAS NÃO MUITO
Em 2017, os extremistas atualizaram seu estatuto de fundação. Afirmou que sua luta era contra o sionismo, não conta os judeus. Não chegou a aceitar a existência do inimigo, mas afirmou que concordava com a criação de um estado palestino em Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental, o que sugeria uma aceitação tácita. Ninguém levou muito a sério.

Os pavorosos ataques terroristas de agora — e não deixa de ser espantoso que se tenham dado justamente sob o governo de Binyamin Netanyahu (já chego lá) — evidenciam que a "mudança" de postura de 2017 era mesmo parolagem. O grupo segue fiel a seu estatuto de fundação.

Os 260 corpos encontrados no local em que se dava uma "rave" diz bem o que é o Hamas: terroristas e assassinos compulsivos.

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TODO TERRORISMO ALEGA CAUSA JUSTA
Desconheço movimento terrorista que não tenha um trauma, real ou mítico, como causa fundadora. Todos os grupos que apelam à eliminação indiscriminada de inocentes, à feitura e eventual assassinato de reféns, a ações espetaculares que matam centenas, milhares às vezes, falam em nome da justiça, deste ou de outro mundo.

O "fanaticus", em latim, é aquele que pertence ao "templo", ao "fanum", ao "lugar consagrado". As suas verdades e convicções, pois, vão além dos limites do real — e assim são as crenças religiosas. Todas elas estão ligadas a um horizonte finalista, escatológico. Sem a ideia do fim dos tempos e da redenção dos convertidos, convenham, inexiste religião. O desastre se dá quando essa vocação disputa o poder terreno.

Qualquer flerte, mínimo que seja, com as práticas adotadas pelo Hamas, antes e agora, significa, efetivamente, um "não" a qualquer chance de paz, o que transforma numa miragem a existência de dois estados.

ISRAEL QUER A PAZ?
Parte considerável da população do país -- as eleições indicam que estamos a falar de praticamente a metade -- não só quer a paz como repudia os métodos truculentos do atual primeiro-ministro, empenhado que está, também, em, na prática, subordinar a Suprema Corte do país ao Executivo -- curiosamente, há vigaristas por aqui, com a simpatia inequívoca do colunismo babão, que querem a mesma coisa.

O avanço da extrema-direita — inclusive de suas facções religiosas, que vêm a Grande Israel sem palestinos, assim como o Hamas vê a Grande Palestina sem judeus — tem como um de seus efeitos mais perversos a desmoralização das correntes moderadas palestinas. Ainda que a Autoridade Nacional Palestina, na Cisjordânia, viva acuada por denúncias de corrupção, mas isso Bibi também conhece, é fato que ela combate o terrorismo, inclusive com troca de informações entre os serviços de Inteligência.

Em dezembro do ano passado, Bibi anunciou como prioridade a legalização de assentamentos em território palestino, ocupação escancaradamente ilegal aos olhos do mundo e até das leis do próprio país. E daí? Legalizados foram. Mas parecia pouco. No dia 26 de junho, o Conselho Supremo de Planejamento autorizou a construção de mais 5.700 casas para colonos na Cisjordânia. Os EUA, aliados de todas as horas, tentaram inutilmente demover o aliado de fazê-lo. Desde janeiro, já são mais de 12 mil construções.

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As Nações Unidas informam que já há mais de 700 mil colonos, distribuídos em 279 núcleos, na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, numa área em que vivem cerca de 3 milhões de palestinos, submetidos às regras rigorosas de segurança impostas por uma ostensiva ocupação militar. Há meros 30 anos, quando se celebrou o naufragado Acordo de Oslo, eram 110 mil.

Netanyahu não quer a paz e, mais de uma vez, declarou que não considera viável a existência de um estado palestino. A cada declaração, sempre seguiu um recuo retórico, acompanhado de ações para minar qualquer chance de um acordo.

Gaza, de onde partiram os ataques, merece a alcunha de "o maior presídio da Terra". Mais de dois milhões de pessoas se apinham numa área que corresponde a um quarto da cidade de São Paulo, submetidas a um bloqueio terrestre, naval e aéreo imposto por Israel, com a colaboração do Egito. Não deixa de ser curiosamente trágico: a interdição funciona para impedir a chegada de remédio e de comida, mas não a de mísseis, como se viu agora.

JUSTIFICATIVA? UMA OVA!
Ao apontar esse comportamento desastroso, estou a justificar os ataques terroristas? Só um delinquente intelectual e político pode chegar a essa conclusão. Nem nesse caso nem em outro qualquer. O que estou demonstrando, isto sim, é a lógica dos duelistas opostos e combinados. Netanyahu estava numa enrascada em seu próprio país, às voltas com questões de política interna. Se consumada a reforma do Judiciário, do modo como quer, será preciso encontrar um nome para o regime político que passará a vigorar no país mesmo para os judeus: democracia não servirá mais.

Vem, agora, a "guerra de longa duração". Por mais que o governo deva explicações sobre a falha de segurança — e o Estado dispõe de Inteligência, tecnologia e armas para antever e sustar ataques dessa natureza —, é claro que vai capturar o apoio, ainda que momentâneo e específico, de correntes que se opunham à sua cruzada autoritária interna. Ainda que me pareça despropositada a comparação com a chamada Guerra do Yom Kippur, há 50 anos — que ameaçou a sobrevivência do próprio Estado —, é fato que se trata do maior ataque ao país desde aquela data, com centenas de mortos e dezenas de reféns.

Israel já começou a retirar seus cidadãos da região fronteiriça com Gaza. Mais desastre pela frente. E os extremistas de cada lado poderão dizer, como pitonisas do futuro que anteviram e que fizeram acontecer: "Vejam como é impossível negociar com eles..."

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Sob o patrocínio dos EUA, Tel Aviv restabeleceu relações com Marrocos, Sudão, Emirados Árabes Unidos e Bahrein, sob o olhar interessado da Arábia Saudita. No fim das contas, trata-se de um esforço para conter o Irã, que é a mão que fornece o potencial bélico para o Hamas, um movimento sunita, e para os xiitas do Hizbollah, que ocupa o Sul do Líbano. Qualquer que seja a reação de Tel Aviv, é improvável que os acordos se desfaçam. Até porque, como se constata, a intenção de conter Teerã superou as reservas desses países árabes à política expansionista do antigo inimigo, que agora conta, em favor de suas teses, com algumas das cenas mais violentas e chocantes produzidas por um movimento terrorista.

CONCLUO
Assistiu-se, até agora, apenas a uma parte do horror. Vem muito mais, antes que se faça algum acordo para suspender temporariamente a matança. O Hamas preexiste à atual e desastrosa gestão de Israel, e uma das razões que explicam a sua existência é sabotar qualquer forma de entendimento. Como é mesmo? Está lá escrito, no seu estatuto: "As iniciativas, as assim chamadas soluções pacíficas, e conferências internacionais para resolver o problema palestino se acham em contradição com os princípios do Movimento de Resistência Islâmica".

As ações de Netanyahu e de alguns aliados, que conseguem estar à sua direita, impedem que os palestinos moderados consigam ganhar a adesão de uma das populações mais oprimidas da Terra, para o que concorrem tanto o governo israelense como os extremistas dos seu próprio povo, especialmente os que governam Gaza. Os duelistas se justificam exibindo seus mártires. O ataque terrorista mantém o minueto de extremistas em meio ao banho de sangue.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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