Reinaldo Azevedo

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Modos de usar tiro em Trump e facada em Bolsonaro: semelhantes e desiguais

A associação é óbvia demais para não ser feita. E se pode até escolher uma frase como síntese dos dois casos: "O que não o mata torna-o mais forte". É claro que me refiro à facada que Jair Bolsonaro levou no dia 6 de setembro de 2018 e ao tiro que feriu ontem a orelha de Donald Trump. A primeira declaração de Flávio Bolsonaro, então candidato ao Senado, na madrugada do dia 7, foi esta: "Ele está mais forte do que nunca, consciente, conversando, bem-humorado. Um recado para esses bandidos que tentaram arruinar a vida de um cara que é um pai de família, que é esperança para todos os brasileiros. Vocês acabaram de eleger o presidente, vai ser no primeiro turno". Donald Trump Jr. publicou ontem no X, logo depois do ocorrido, a foto do pai, com marcas de sangue no rosto, à frente da bandeira dos Estados Unidos. O texto: "Ele nunca vai parar de lutar para salvar a América." É evidente que ambos pressentiram a vitória no cheiro de sangue. Mas um evento será mesmo espelho do outro?

Trump é considerado favorito contra Joe Biden. Mesmo nas pesquisas em que ambos estão na margem de erro nos votos totais, o republicano leva vantagem no Colégio Eleitoral porque à frente em quase todos os chamados Estados-pêndulo. A crise entre os democratas tem uma razão: buscar um nome que possa lhes dar também a chance de ganhar, uma vez que se considera que, hoje, têm apenas a de perder. Se as coisas iam bem para o republicano, é claro que acabou lhe acontecendo ontem o melhor do ponto de vista eleitoral: como o tiro não o matou, então ele ficou mais forte. Em contraste com um Biden combalido, que troca nomes e parece meio aéreo, viu-se em 2024 o golpista de 2020 com a orelha sangrando, mas com o punho cerrado, a mobilizar os seus: "Fight, fight, fight". Por isso a foto e a frase do filho.

A situação de Bolsonaro era outra. Muito outra! No Datafolha de 22 de agosto, duas semanas antes da facada, Lula, mesmo preso, tinha 39% das intenções de voto, e o então candidato do PSL, apenas 19%. No cenário em que Haddad aparecia como o nome do PT, o "Mito" liderava com 22%, seguido por Marina Silva (Rede), com 16%; Ciro Gomes (PDT), com 10%, e Geraldo Alckmin (PSDB), com 9%. Aquele que seria eleito presidente dois meses depois era derrotado no segundo turno pelo petista (52% a 32%), pela candidata da Rede (45% a 34%) e pelo tucano (38% a 33%).

Acima, a imagem publicada por Trump Jr. depois do tiro e a de Bolsonaro nas redes sociais dos filhos no dia seguinte à facada: um como herói e o outro como mártir. O objetivo é o mesmo
Acima, a imagem publicada por Trump Jr. depois do tiro e a de Bolsonaro nas redes sociais dos filhos no dia seguinte à facada: um como herói e o outro como mártir. O objetivo é o mesmo Imagem: Reprodução

DEPOIS DA FACADA
No Datafolha de 10 de setembro, quatro dias depois da facada, com Lula já declarado inelegível pelo TSE e com Haddad como como nome do PT, Bolsonaro assume a liderança no primeiro turno, com modestos 22%. Na sequência, vinham Ciro (13%), Marina (11%), Alckmin (10%) e Haddad (9%). Além de liderar a rejeição (43%), o pai de Flávio (e dos outros...) perdia para a então ex-ministra do Meio Ambiente (43% a 37%), para o ex-governador de São Paulo (43% a 34%) e para o pedetista (45% a 35%). Empatava com Haddad, que acabara de entrar na disputa: 39% a 38%.

Aquele tom triunfalista de Flávio mudou. Constatou-se que o ferimento era, com efeito, mais grave do que se informara inicialmente. E as pesquisas não responderam com a imediatez imaginada. Então o super-herói — à moda Trump que vimos ontem — cedeu lugar ao mártir. Um Bolsonaro lutando contra a morte no hospital "para salvar o Brasil do comunismo" começou a ser magnificado nas redes.

Como estava no hospital, o extremista de direita parou de ser confrontado por adversários também no horário eleitoral. Não podia comparecer a debates, mas concedia entrevistas no hospital, no leito do herói. Saltou para 28% na pesquisa de 19 de setembro e já empatava no segundo turno com Marina (42% a 41%), com Alckmin (40% a 39%) e com Haddad (41%). Só aparecia atrás de Ciro (45% a 39%).

Na véspera do primeiro turno, os 22% que a vítima triunfante de Adélio tinha quatro dias depois da facada já haviam se convertido em 38% (40% dos válidos). Aparecia numericamente à frente do candidato do PT no segundo turno (45% a 43%); de Alckmin (43% a 41%) e se aproximava de Ciro, mas ainda atrás (47% a 43%). Na véspera do segundo turno, o Datafolha apontou que Bolsonaro tinha 55% dos votos válidos contra 45% de Haddad. No resultado no TSE: 55,13% a 44,87%.

Não há por que duvidar de que a campanha de Trump vai tentar transformar tiro em votos, mas ele já liderava a disputa. Flávio tentou consertar o que dissera horas depois da facada. Em evento de campanha de 9 de setembro, afirmou: "Meu pai não vai ser eleito por causa de uma facada. Ele tomou a facada porque já estava eleito. Essa é a realidade, doa a quem doer". Doeu ao Brasil, aos pobres, os milhares de mortos por Covid, à ciência, ao bom senso, ao bom gosto etc. Mas era mentira. Ainda que um mau espírito já houvesse, sim, despertado das trevas havia um bom tempo, "a realidade" é que Bolsonaro passou a fazer uma campanha sem adversários. O tiro pode consolidar a vantagem de Trump. Bolsonaro só foi eleito porque a Lava Jato havia tirado do embate aquele que o teria vencido e que o venceria depois e porque Adélio fez o que fez.

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OUTRAS DIFERENÇAS
Bolsonaro foi atacado no dia 6 de setembro, e o primeiro turno se deu no dia 7 de outubro. As eleições nos Estados Unidos acontecem no dia 5 de novembro. Ainda há pela frente três meses e três semanas. Os democratas têm mais tempo para tentar uma resposta. Estou aqui a dar alguma esperança a quem não quer Trump eleito? Não necessariamente. Até porque Biden não ajuda.

A julgar pela reação imediata de Trump — o tal punho cerrado e o "lutem, lutem, lutem" —, parece que será ele mesmo a exacerbar o discurso do ódio. Bolsonaro vitimizou-se — a heroicização do "imorrível" é uma construção posterior —, e seus aliados comandaram o show de horrores da campanha. Tudo indica que Trump aproveitará o tiro que não o matou para vociferar, ele próprio, mais valentias. Há sinais de que vêm por aí coisas feias e perigosas.

ENCERRO
A frase "O que não o mata torna-o mais forte" é do livro "Ecce Homo", de Nietzsche, e ele está a falar de si mesmo. Foi escrito dois anos antes da morte. É uma tentativa de explicar seu próprio pensamento. Há passagens notáveis e outras incompreensíveis. A tirada está no primeiro capítulo: "Por que sou tão sábio" -- o seguinte é "Por que sou tão sagaz", e o último, "Por que sou um destino".

No capítulo, ele afirma que deixava de ser pessimista só nos tempos em que se encontrava com "baixa vitalidade". Vale dizer: o otimismo derivava do estado mórbido. E se entende que o pessimismo era um apanágio da sanidade. Era o homem que dizia preferir ser um sátiro a ser um santo.

O tiro que torna Trump mais forte abre as portas da insanidade. Alguma chance para o otimismo, ainda que dos sátiros?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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