Reinaldo Azevedo

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Opinião

Leia carta de Biden. Ou: A esperança no fundo da caixa é a última a morrer

O democrata Joe Biden não vai mais disputar a reeleição. Anunciou a desistência neste domingo com uma carta publicada nas redes sociais. Não resistiu à pressão desde o debate desastroso, para ele, que travou contra o republicano Donald Trump no dia 27 de junho, na CNN.

Ali ficou claro. Para ele, não dava mais. Especialmente porque o adversário não se saiu assim tão bem sob certo ponto de vista. O golpista que incentivou a invasão do Capitólio só mentiu menos do que fez alguns dias depois, na quinta passada, quando aceitou a indicação do Partido Republicano. Mas Biden não deu combate.

A corrida para ele tinha acabado ali. Era só uma questão de tempo. Depois veio a série de eventos sensacionais. Como a esperança é sempre aquela que resiste teimosamente no fundo da caixa, depois que escapam todos os males do mundo, quem sabe a Caixa de Pandora reserve alguma boa surpresa para a democracia americana.

Como primeira síntese, pode-se afirmar o seguinte: a derrota democrata deixa de ser certa e passa a ser, ao menos, duvidosa. No que respeita ao próximo mandato, o certo — e, convenham, terrível — passou à condição de duvidoso.

Segue a íntegra de sua carta de renúncia à candidatura. Volto em seguida:

"Meus compatriotas americanos,
Nos últimos três anos e meio, fizemos grandes progressos como Nação. Hoje, a América tem a economia mais forte do mundo. Fizemos investimentos históricos na reconstrução da nossa nação; na redução dos custos dos medicamentos prescritos para os idosos e na expansão dos cuidados com a Saúde, acessíveis a um número recorde de americanos. Fornecemos cuidados extremamente necessários a um milhão de veteranos expostos a substâncias tóxicas. Aprovamos a primeira lei de segurança de armas em 30 anos. Nomeamos a primeira mulher afro-americana para a Suprema Corte. E aprovamos a mais significativa legislação climática da história mundial. A América nunca esteve mais bem-posicionada para a liderança do que estamos hoje.

Sei que nada disso poderia ter sido feito sem vocês, povo americano. Juntos, superamos uma pandemia, que ocorre uma vez a cada século, e a pior crise econômica desde a Grande Depressão. Protegemos e preservamos nossa democracia. E revitalizamos e fortalecemos nossas alianças em todo o mundo.

Foi a maior honra da minha vida servir como seu presidente. E, embora fosse minha intenção buscar a reeleição, acredito que é do interesse do meu partido e do país que eu desista e me concentre exclusivamente no cumprimento dos meus deveres de presidente no resto do meu mandato.

Falarei à nação ainda nesta semana, com mais detalhes, sobre a minha decisão. Por enquanto, deixem-me expressar a minha mais profunda gratidão a todos aqueles que tanto trabalharam para me ver reeleito. Quero agradecer à vice-presidente Kamala Harris por ser uma parceira extraordinária nesse trabalho. E deixem-me expressar o profundo apreço ao povo americano pela fé e confiança que vocês depositaram em mim.

Acredito hoje no que sempre acreditei: que não há nada que a América não possa fazer quando o fazemos juntos. Só temos de nos lembrar de que somos os Estados Unidos da América."

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RETOMO
Não há como ignorar certa amargura no que antecipa sua despedida da política. Obviamente não era esse o desfecho imaginado para esse mandato quando Biden apeou Trump do poder em 2020, nas circunstâncias em que conhecemos.

Os dados estruturais da economia e os acontecimentos contingentes que não foram de sua escolha, especialmente no cenário externo, robusteceram a "narrativa" — uma das palavras recorrentes no vocabulário dos fascistas mundo afora — da extrema-direita populista.

Chegou-se a antever que o bufão criminoso pudesse desistir do seu intento e tivesse de responder por seus crimes. Não aconteceu. E a institucionalidade americana está menos equipada do que a brasileira para conter uma liderança disruptiva.

Os Estados Unidos têm hoje uma das mais baixas taxas de desemprego do mundo e de sua história. A inflação pós-Covid e no curso da guerra da Rússia contra a Ucrânia disparou, mas está agora em torno de 3%, compatível com os da Zona do Euro. Num país fortemente movido a crédito, no entanto, juros entre 5,25% e 5,5% significam, sim, um transtorno para os consumidores, mas é mentira, quando se considera o conjunto da obra, que os resultados da gestão Biden sejam catastróficos.

Os feitos que o presidente elenca em sua carta são reais. Mas lá, como aqui, a farsa que a fascistada põe para circular nas redes tem um peso importante na esfera de sensações. O economista Paul Krugman já escreve diversos artigos sobre uma espécie de paradoxo que se percebe, em certa medida, também no Brasil: uma maioria diz que a economia americana piorou muito, embora não diga a mesma coisa sobre a própria vida.

No Brasil, essa incongruência se percebe quando se avaliam as expectativas positivas em contraste com a avaliação negativa sobre o desempenho econômico do país. Fato: a militância incansável do trumpismo a apontar o colapso e o apocalipse mobiliza milhares, a despeito dos números. E isto, a força da mentira, é um fato. Lá e aqui.

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A propósito: o discurso do biltre na Convenção Republicana traz uma sequência estupefaciente de mentiras. Os que se interessarem por detalhes devem procurar o confronto entre suas diatribes retóricas e os fatos apontados pelo site da CNN Internacional. Infelizmente, ficou claro que Biden não tem condições de confrontá-lo.

AS GUERRAS
Na sua sanha delinquente, Trump responsabilizou o presidente dos EUA pelas guerras Israel-Hamas e Rússia-Ucrânia. Segundo disse, com ele na Presidência, os conflitos não estariam em curso porque, apelando a uma avaliação que atribuiu ao autocrata Vikor Orbán, primeiro-ministro da Hungria -- que ele chamou apenas de "um homem durão" --, todos teriam "medo de Trump", incluindo a China. E ainda disse que não endossaria inteiramente a fala porque diriam ser ele um fanfarrão. E declarou pateticamente: "Eu não sou um fanfarrão". Santo Deus!

Fato. O apoio incondicional de Biden a Israel lhe causou danos junto ao eleitorado mais progressista. A cruzada dos EUA e da Europa contra Putin e em apoio à Ucrânia conta com a hostilidade de parte considerável do povo americano, que considera o gasto de guerra excessivo para o que lhe parece tão distante. E o faroleiro garante: acabara com os conflitos rapidamente.

De fato, ele não dá a menor bola para os palestinos e deixará Netanyahu livre para matar. Seu eleitorado o apoia. Orbán é sabidamente um aliado de Putin. A "pax" trumpista, se eleito, pode passar pelo sinal verde para que a Rússia anexe a Criméia e os territórios ocupados a leste da Ucrânia. "E a Europa?" O republicano já deu a entender que não considera um problema seu. Os que tentam antever um norte estratégico nessa escolha apontam que, para o trumpismo, a concessão territorial pode ser o preço que se vai pagar para afastar a Rússia de sua aliança com a China. Que mundo seria esse? Muito se chuta e pouco se sabe.

De qualquer sorte, é evidente que é estupidamente falso que nada disso estaria em curso se Trump estivesse no poder. Como é escandalosamente mentiroso que o suposto avanço do programa nuclear iraniano se deva a escolhas de Biden. Ao contrário: o fortalecimento da linha-dura iraniana nessa área é uma cortesia do rompimento do acordo com o regime dos aiatolás, levado a efeito pelo então governo... Trump.

Mas e daí? Biden não parece ter força hoje — e não tem — para enfrentar o farsante.

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E AGORA?
O que já se mostrava uma tarefa hercúlea ganhou as tintas do impossível depois do atentado e da impressionante espetacularização da tragédia que não houve, a que Trump deu curso dois minutos depois dos tiros, com a orelha ainda sangrando. Nunca se viu senso de marketing tão rápido, tão atilado, tão fulminante --o que chegou a alimentar teorias conspiratórias, segundo as quais tudo seria uma encenação. O tiro era real. O ferimento também. A "luta" dos "destruidores da América" contra seu salvador era, obviamente, uma farsa. Mas era o que faltava para conferir verossimilhança a esse papel e ao suposto "milagre".

Na carta, Biden não aponta um depois. Vamos aguardar o pronunciamento à nação. Cita Kamala Harris porque, afinal, é a vice, não porque, até agora ao menos, esteja a sugerir que tenha de ser ela o nome a sucedê-lo como o nome dos democratas. É preciso reconhecer: incumbente está sendo deposto da posição de candidato à reeleição pelo partido. E talvez deixe, então, para o establishment da legenda a decisão.

Voltamos ao começo. Para os democratas, a causa estava perdida. Agora se resgatou ao menos o cenário de alguma dúvida. Como a esperança resta no fundo da caixa e não morre, quem sabe a sanha destrutiva de Trump contra Biden desde o dia seguinte à eleição de 2020 produza o gérmen que vai impedi-lo, de novo, de voltar à Casa Branca. Tanto fez o cara e de tal sorte contribuiu para enfraquecer a figura do oponente que os próprios democratas se encarregaram de afastar o seu escolhido, reabrindo o jogo.

Será?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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