Reinaldo Azevedo

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Opinião

EUA fazem besteira que só ajuda Maduro; Amorim e o ônus da prova em eleição

Um dos pilares do discurso mistificador e manipulador de Nicolás Maduro, ditador da Venezuela, é a suposta interferência desestabilizadora dos EUA no país. Pois é... E o que fez nesta quinta Anthony Blinken, secretário de Estado do governo Biden? Emitiu uma nota reconhecendo o oposicionista Edmundo González como o vencedor da eleição. Transcrevo um trecho:
"(...) a oposição democrática publicou mais de 80% das folhas de contagem recebidas diretamente das seções eleitorais em toda a Venezuela. Essas folhas de contagem indicam que Edmundo González Urrutia recebeu a maioria dos votos nesta eleição, por uma margem intransponível. Observadores independentes corroboraram esses fatos, e esse resultado também foi apoiado por pesquisas de boca de urna e contagens rápidas no dia da eleição. Nos dias que se seguiram à eleição, consultamos amplamente parceiros e aliados em todo o mundo, e, embora os países tenham adotado abordagens diferentes para responder, nenhum concluiu que Nicolás Maduro recebeu a maioria dos votos nesta eleição.

Dadas as evidências esmagadoras, está claro para os Estados Unidos e, mais importante, para o povo venezuelano, que Edmundo González Urrutia ganhou a maioria dos votos na eleição presidencial de 28 de julho na Venezuela.
(...)
Parabenizamos Edmundo González Urrutia por sua campanha bem-sucedida. Agora é o momento de os partidos venezuelanos iniciarem discussões sobre uma transição respeitosa e pacífica, de acordo com a lei eleitoral venezuelana e os desejos do povo venezuelano. Apoiamos totalmente o processo de restabelecimento das normas democráticas na Venezuela e estamos prontos para considerar maneiras de reforçá-lo em conjunto com nossos parceiros internacionais."

Esqueçam por um instante de que se está falando do asqueroso Maduro e de uma eleição que, tudo indica, ele fraudou. O que vai acima é uma aberração.

O sr. Anthony Blinken — de reputação notoriamente desastrada e desastrosa na administração das crises do Oriente Médio e da Rússia-Ucrânia — ignora os parceiros latino-americanos e, antes que se tenha dado por perdida a chance de uma "verificação imparcial", decide por decreto imperial o vitorioso e o derrotado. Será que não ocorre ao secretário de Estado que, assim, todos se sentem, de algum modo, ameaçados? A propósito: qual é a fonte de informação sobre os 80% das folhas de contagem?

Em discurso transmitido no X, Maduro surfou na besteira:
"Querem impor um modelo 'Guaidó Parte 2'. 'Guaidó Parte 1' foi um fracasso, um dano ao país. Nós tivemos muita paciência com Guaidó. Agora os Estados Unidos dizem que a Venezuela tem outro presidente. Os Estados Unidos devem tirar o seu nariz da Venezuela. O povo venezuelano é quem manda na Venezuela. É quem pode. É quem decide. É quem elege. É uma contradição horrorosa. O CNE sofreu um ataque bruto. Agora os Estados Unidos dizem ter as atas."

Nem que o próprio Maduro tivesse ditado a Blinken o que fazer, o resultado da encomenda sairia tão ao gosto do ditador. É impressionante.

DEPOIS DAS AMEAÇAS, MAIS AMEAÇAS
O bufão sanguinolento não recua. Depois das ameaças feitas na quarta, em entrevista coletiva a correspondentes internacionais, ele voltou à carga nesta quinta, falando a uma TV estatal:

"Estou preparando duas prisões, que devo ter prontas em 15 dias. Já estão sendo reparadas. Todos os manifestantes vão para Tocorón e Tocuyito, presídios de segurança máxima."

Foi além:
"Temos mais de 1.200 capturados, e estamos procurando mais 1.000. Vamos pegar todinhos porque eles foram treinados nos Estados Unidos, no Texas; na Colômbia, no Peru e no Chile."

Classificou os manifestantes de "terroristas" e "delinquentes", disse que são membros de "quadrilhas da nova geração" e que pretendem transformar a Venezuela num Haiti.

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A NOTA CONJUNTA
O Brasil fez a coisa certa ao assinar, em companhia do México e da Colômbia, uma nota em que, sendo para valer, deixa claro que não há como reconhecer o anunciado resultado da eleição sem a comprovação da sua veracidade. No trecho que importa a respeito, lê-se:
"
As controvérsias sobre o processo eleitoral devem ser dirimidas pela via institucional. O princípio fundamental da soberania popular deve ser respeitado mediante a verificação imparcial dos resultados."

A questão é saber, no caso do texto assinado pelos três países, o que quer dizer "imparcial". O Brasil não endossou, por exemplo, a resolução da OEA — que obteve 17 dos 18 votos que seriam necessários para ser aprovada — em razão de um trecho que defendia a análise das atas eleitorais "na presença de organizações de observação independentes para garantir a transparência, credibilidade e legitimidade dos resultados eleitorais".

Por "independentes", entendeu-se "externos", e o Itamaraty avaliou que a organização não dispõe de poder para isso. Sei. Então volto ao ponto: numa ditadura em que o presidente do Conselho Nacional Eleitoral, o procurador-geral, a Assembleia Nacional e Tribunal Superior de Justiça (TSJ) são esbirros de um ditador, é possível saber o significado da palavra "externos", mas não da palavra "imparcial".

Pergunta óbvia: as tais atas eleitorais, a esta altura, estão íntegras? Até a madrugada de hoje, a simples computação dos votos estava congelada em 80%. Atas, então, nem pensar...

AMORIM, A DECEPÇÃO E A FALSA QUESTÃO
Celso Amorim, assessor especial do presidente Lula, concedeu uma entrevista ao jornalista Kennedy Alencar do "É Notícia", da RedeTV. A conversa aconteceu antes da nota conjunta dos três países e foi ao ar ontem à noite. Deixou claro que o presidente venezuelano decepcionou as expectativas do governo brasileiro. Disse:
"Agora, não há dúvida de que, como outros, nós estamos decepcionados com a demora do Comitê Nacional Eleitoral em publicar os dados. (...) Mas também a oposição não consegue provar o contrário; ela consegue colocar dúvidas, mas não provar o contrário. Então é preciso um pouco de cautela".

Aqui o juízo pode entrar em um terreno perigoso. Provar o contrário sem acesso às atas? Com uma simples amostra de quase mil boletins que os oposicionistas conseguiram recolher, a vitória da oposição parece ser acachapante.

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Há mais: o CNE retardou a divulgação do resultado e, de súbito, na madrugada de segunda, anunciou a vitória de Maduro com alegados 80% da apuração. Esgotou-se ontem o prazo para a conclusão do processo... inconcluído.

Mais adiante, Amorim fez uma consideração que merece um reparo:
"O problema é que a Venezuela, em função de tudo o que já aconteceu... Em qualquer país, o ônus da prova está em quem acusa, mas, no caso da Venezuela, o ônus da prova tá em quem é acusado ou em quem é objeto de suspeição. Eu acho que, de fato, em função dessa... Enfim, de tudo o que já aconteceu, de todo o quadro político, há uma expectativa de que a Venezuela possa provar, de que o governo venezuelano possa provar a votação que ele alega ter tido (...). Em princípio, deveria ser fácil. Eu estive pessoalmente com Maduro e disse a ele o que nós esperávamos. Perguntei a ele: 'Vem cá, vamos ter as atas?' Porque o sistema eleitoral venezuelano, em si, e isso é reconhecido pela própria oposição, é invulnerável. Você não tem como falsificar o voto, pela maneira como ele ocorre, as comprovações que são dadas imediatamente... Então, ele é invulnerável. A dúvida é realmente se a contagem corresponde às atas. Então eles têm que mostrar as atas. Eu perguntei isso ao presidente Maduro, na presença do presidente da Assembleia, e ele disse que era uma questão de dois ou três dias... Os dois ou três dias já estão passando."

COMENTO
Amorim é um homem douto, culto, mas confunde direito penal com direito eleitoral. No primeiro caso, o ônus da prova é de quem acusa. No segundo, nem se cuida de falar de "ônus" propriamente. Trata-se de uma obrigação do órgão certificador da vitória dispor dos elementos que justifiquem tal certificação. Onde eles estão? Antes que ficassem disponíveis ao derrotados, e indisponíveis seguem, fez-se a pajelança da unção de Maduro.

Como se faz numa democracia? Lula venceu a eleição no dia 30 de novembro de 2022, com amplo acesso garantido a todos os atores legítimos, inclusive à oposição, aos dados da eleição. A diplomação, prevista no Código Eleitoral, só ocorreu no dia 12 de dezembro.

Reitere-se: a oposição não tem de "provar" que Maduro perdeu, embora o tenha feito, parece-me. Cabe ao CNE demonstrar, com dados que possam ser escrutinados — como podem no Brasil — que um usurpador não tomou o lugar do povo. No direito eleitoral, o ônus da prova é, quando menos, de quem certifica a vitória.

O diabo é que, na Venezuela, não existe diferença entre o cafofo ditatorial de Maduro e as instituições.

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E convém não esquecer ao encerrar: a oposição não dispunha de paridade de armas — eleitorais, democráticas e institucionais — para disputar com o ditador. Aceitou o desafio ainda assim. Ganhou, mas não levou. Nem a arrogância estúpida dos EUA transformam o derrotado Maduro num vencedor.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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