Reinaldo Azevedo

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Opinião

A ascensão de gente como Marçal atualiza a questão: de que lado você está?

Não lido com bola de cristal e não posso antever se o tal Pablo Marçal (PRTB) vai chegar à Prefeitura de São Paulo. Uma coisa é certa: já há feiticeiros do caos tentando dar algumas piscadelas para o cara. Um deles — sem citação por ora; tudo a seu tempo — escreve um artigo asqueroso sugerindo que é um erro conter as ilegalidades do candidato nas redes. Para ele, devemos nos perguntar onde estão as falhas da democracia, dos políticos e do establishment. Afinal, seriam estes os verdadeiros responsáveis pela emergência de figuras como Marçal e, antes dele, Bolsonaro.

Se o tonto oportunista estivesse na Alemanha de 30, teria aplaudido Franz von Papen, que imaginou que os conservadores poderiam conter Hitler entregando-lhe o poder... Na verdade, não se trata de um analista político, mas de um esbirro a serviço das redes sociais que pretende, mais uma vez, encobrir o óbvio: num jogo com regras, em que as ditas-cujas fossem reguladas pela Constituição, tipos como Marçal não proliferariam.

Os tontos acabaram de entender que estou comparando Marçal com Hitler. Não. Trato de posturas diante de forças disruptivas da ordem democrática. Antes e agora. "Hitler não tinha redes, Reinaldo..." Não me digam! Os vários fascismos europeus, notadamente os dois mais importantes -- o italiano e o alemão -- souberam manipular a comunicação de massa com muita habilidade e, obviamente, contaram com a colaboração dos conservadores. Leiam:
"Os líderes conservadores tiveram de decidir se deveriam tentar cooptar o fascismo ou empurrá-lo de volta à marginalidade. UMA DECISÃO DE IMPORTÂNCIA CRUCIAL FOI SE A POLÍCIA E OS TRIBUNAIS DEVERIAM OBRIGÁ-LOS A RESPEITAR A LEI. O chanceler alemão Brüning tentou conter a violência nazista em 1931-1932. Proibiu, em 14 de abril de 1932, as ações uniformizadas da SA. Em julho de 1932, contudo, quando Franz von Papen substituiu Brüning no cargo de chanceler, ele suspendeu a proibição, e os nazistas, excitados pela perspectiva de vingança, desencadearam o período mais violento da crise constitucional de 1930-1932. Na Itália, embora alguns chefes de polícia tenham tentado pôr freio ao comportamento transgressor dos fascistas, os líderes nacionais, em momentos decisivos, preferiram transformar Mussolini a discipliná-lo. Os líderes conservadores de ambos os países concluíram que aquilo que os fascistas tinham a oferecer superavam em muito as desvantagens de permitir que esses rufiões se apossassem do espaço público da esquerda, usando a violência. A imprensa nacionalista e os conservadores de ambos os países foram consistentes no uso de dois pesos e duas medidas no julgamento da violência fascista e da violência de esquerda".

Transcrevo um trecho de "A Anatomia do Fascismo", de Robert O. Paxton. Insisto: não estou a afirmar que vivemos sob uma ameaça fascista, antes que algum tonto venha com a conversa mole de que "fascista e tudo aquilo de que a gente não gosta"... O nível Massinha I do Liberalismo à Brasileira anda muito excitado em suas colunetas. O ponto não é esse. O que há de fundamental na passagem acima é a indagação sobre o cumprimento ou não das leis. Ou por outra: deve a democracia condescender com as práticas que destroem aquilo que lhe garante funcionalidade?

Indago: a esta altura, há alguma dúvida razoável sobre as agressões do tal Pablo Marçal às regras do jogo? E, no entanto, a última notícia relevante que tivemos sobre a Justiça partiu do TRE-SP, que suspendeu o direito de resposta de Guilherme Boulos (PSOL) nas redes do candidato do PRTB, embora este o tenha caluniado de maneira vil. O desembargador Encinas Manfré e os juízes Régis de Carvalho e Maria Cláudia Bedotti, no entanto, viram risco de prejuízo irreversível ao caluniador na resposta dada pelo caluniado e ainda chamaram a calúnia contra o psolista de "supostos fatos inverídicos". A imprensa registrou, sim, a informação com a entonação burocrática de quem informasse: "Hoje é segunda-feira e faz frio em São Paulo".

Mais um pouco de Paxton:
"Quando um sistema constitucional se vê refém do impasse, e as instituições democráticas deixam de funcionar, a arena política tende a se estreitar. O círculo dos responsáveis pelos processos decisórios pode se ver reduzido a uns poucos indivíduos, talvez a apenas um chefe de Estado, acompanhado de seus assessores civis e militares mais imediatos."

"CONSERVADORES" CONTRA A DEMOCRACIA
No Brasil do bolsonarismo e das tramoias golpistas, as instituições democráticas não deixaram de funcionar, é certo, mas foram severamente atacadas, e coube ao STF e ao TSE -- com a destacada atuação de Alexandre de Moraes -- fazer valer a lei. Que seja o ministro, hoje, o principal alvo de certos setores reacionários -- que ousam, não obstante, falar em nome das Santas Escrituras democráticas -- não chega a surpreender a história.

Referindo-se ao modo como os conservadores julgavam poder controlar Hitler e Mussolini, escreve Paxton:
"Mesmo que, para chegar a um acordo, fosse necessário admitir esses arrivistas grosseiros ao primeiro escalão do governo, os conservadores estavam convencidos de que manteriam o controle do Estado. Nunca se ouvira falar de pessoas surgidas do nada chefiando governos europeus. Ainda era normal na Europa, mesmo após a Primeira Guerra e mesmo em democracias, que os ministros e os chefes de Estado fossem membros cultos das classes superiores, com longa experiência na diplomacia e na administração.
(...)
Hitler e Mussolini foram os primeiros aventureiros de classe baixa a chegar ao poder em países europeus.
(...)
Um ingrediente central dos cálculos dos conservadores era que o cabo austríaco [Hitler] e o agitador novato e ex-socialista italiano não teriam a menor ideia do que fazer com o cargo de primeiro escalão. Seriam incapazes de governar sem o 'savoir-faire' dos cultos e experientes líderes conservadores. Em suma, os fascistas ofereciam uma nova receita de governo, contando com o apoio popular, sem implicar uma divisão do poder com a esquerda e sem representar qualquer ameaça aos privilégios sociais e econômicos e ao domínio político dos conservadores. Os conservadores, de sua parte, tinham em mãos as chaves das portas do poder."

NÃO DEU ASSIM TÃO CERTO...
Como se sabe, não sobrou na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussolini um conservadorismo "instruído" para domar os fascismos; antes, estes domaram os conservadores -- e os que resistiram ou tiveram de se exilar ou foram mortos. A pregação "de massa" contra a democracia mundo afora carrega, sim, muito dos valores fascistas. Para lembrar Hannah Arendt, em "As Origens do Totalitarismo", aqueles que estão no centro dos movimentos disruptivos se colocam acima deles e se apresentam como uma resposta para a restauração da ordem. Não foi assim que se deu por lá? Não era o que Bolsonaro oferecia por aqui? Não é o que Trump promete nos EUA?

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E, creiam, os ditos "conservadores" — no Brasil, quase sempre são reacionários envergonhados, embora a perda de vergonha seja progressiva — são irresistivelmente atraídos pelo autoritarismo. Os liberais por aqui andariam confortavelmente numa Kombi, daquelas antigas. Quiçá num Fusca...

VOLTO A MARÇAL
A conversa de que devemos nos perguntar o que há de errado "com o sistema político" antes de que o braço da lei pese sobre figuras como Bolsonaro ou Marçal repete o roteiro da covardia de conservadores na Alemanha e na Itália do século passado e transforma a necessária crítica às disfuncionalidades da democracia, que são muitas, numa sentença de morte. É justamente assim que as democracias morrem.

Obviamente não basta, embora seja absolutamente necessário, banir das redes os crimes eleitorais que o candidato do PRTB comete. A questão é saber se o sistema o obriga a respeitar o aparato legal, devolvendo-o para a marginalidade, ou se vai tolerá-lo. Tolerando-o, como aconteceu antes com Bolsonaro, tem-se um compromisso certo com uma crise maior. A ideia de que um arruaceiro de cervejaria seria necessariamente contido pelos sábios do conservadorismo, que o viam com olhos até cobiçosos porque, afinal, inimigo das esquerdas, tem história conhecida.

CONCLUO
É claro que tem lá a sua graça ver o desespero dos "conservadores de Bolsonaro" -- que são todos reacionários -- com a ascensão de um "outsider" de outra extração, que bagunça o "statu quo" do hospício da extrema-direita. Mas se trata de não mais do que isto: uma piada macabra para a democracia. As divergências entre eles é assunto que interessa a fascistoides.

Aos progressistas, importa o valor universal da democracia. Até porque ninguém tem dúvida — e o filósofo Carlucho já o anunciou num bate-boca amoroso com Marçal — que, contra Boulos, estarão obviamente todos juntos, para surpresa de ninguém.

É preciso que se faça cumprir a regra do jogo. Como fez Xandão antes, durante e depois da eleição de 2022. As leis existem, e as instituições também. Dispomos dos elementos objetivos para que a ordem democrática contenha as forças disruptivas. E aí é preciso escolher um lado.

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"Meu lado é bater em gente como Xandão e compreender a gênese de gente como Marçal e Bolsonaro". É uma escolha. Não é, obviamente, a minha. Não seria na Alemanha e na Itália da década de 30.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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