Se o atraso ideológico se soma ao saber técnico, a democracia corre perigo
Um fenômeno desafia a compreensão dos analistas. O avanço da economia da informação nos últimos 40 anos é brutal. Não é exagero dizer que supera, na inovação, na mudança de padrão e na velocidade da transformação, tudo o que a humanidade experimentou antes. E, no entanto, Brasil e mundo afora, estamos sendo ameaçados pelas trevas.
Penso, por exemplo, no setor em que atuo. Há quatro décadas, a maior revolução da imprensa escrita ainda era Gutemberg, que morreu em... 1.468! De lá até a década de 90 do século passado, experimentamos variações em torno do mesmo tema. A radiodifusão, por sua vez, está mais perto do megafone ou do alto-falante da praça do que dos meios eletrônicos de veiculação de notícias — e de não notícias... Uma nota à margem: mudou, e esta é matéria para os que estudam o cérebro humano, o próprio modo de apreender o mundo e de organizar o pensamento.
Quando escrevíamos em laudas, era prudente ter na cabeça a composição do texto, dadas as dificuldades de fazer inserções no meio do quarto parágrafo quando já se estava no oitavo. Ao sentar diante da máquina de escrever — um instrumento que havia antigamente, pesquisem... —, era prudente saber o que se queria. Não é raro que eu perceba hoje em dia, aqui e ali, palavras correndo desesperadamente atrás de uma ideia sempre fugidia. Toda mudança sempre traz alguma perda. E essa não é irrelevante. Mas avanço.
PRODÍGIOS DE MARAVILHA E HORROR
Olhem os prodígios que se operaram! Pensemos um pouco nos EUA, a nação mais poderosa da Terra em qualquer tempo. Donald Trump criou a sua própria rede, a "Truth Social", para poder veicular, sem risco de sofrer qualquer forma de mediação, mentiras e obscurantismos. Os avanços técnicos que precederam a Internet e dela decorreram beneficiam também seus eleitores. E é muito provável que parte deles considere crível que imigrantes haitianos estão comendo os cães e os gatos dos americanos de Springfield. Ainda que os moradores da cidade neguem. Não importa. Chama-se mentira à negação da mentira.
Os telefones celulares se universalizaram no Brasil e, com eles, o envio de mensagens. A ciência que faculta essa comunicação, como escreveu Drummond num poema, "não é por milagre: obra do homem e da tecnologia". E, no entanto, eles se tornaram suportes para a propagação do negacionismo científico e das teorias conspiratórias as mais despropositadas.
Poucas pessoas têm formação intelectual e informação para compreender a extensão das mudanças em curso. Um grupo ainda mais reduzido domina instrumentos para interferir no fazer técnico propriamente. Mas foi diferente em algum momento da nossa história? E, no entanto, todos os avanços técnicos do pós-guerra resultaram em elevação da qualidade de vida de milhões de pessoas e, em boa parte do mundo, fizeram avançar a democracia. Hoje em dia, o que se teme com o desenvolvimento da Inteligência Artificial, por exemplo, é justamente a morte do regime democrático.
Que diabos, afinal de contas, está em curso desta vez, de sorte que o extremo do progresso acaba sendo manipulado por grupos que alimentam o maior surto reacionário nas democracias desde o fim da Segunda Guerra? Vejam o modo como correntes religiosas, por exemplo, aqui e no mundo, se utilizam dos novos modos de pagamento — e, pois, da ciência — para negar a ciência.
Como é que se corta o nó górdio que atrela o extremo do avanço técnico ao extremo do reacionarismo e do negacionismo científico, que hoje ameaça até as vacinas, embora tenham sido elas a tirar o mundo do caos da covid e a devolvê-lo à normalidade possível? Todos vimos há dias o prefeito Ricardo Nunes a fazer profissão de fé contra a obrigatoriedade do imunizante e contra o distanciamento social, medidas essenciais para reduzir a contaminação e tratar os já doentes, num aceno ao eleitorado bolsonarista. Considero o episódio mais vil da campanha. A cadeirada em Marçal foi só o mais barulhento. Adversários se estapeiam desde que o mundo é mundo. A fala de Nunes é um capítulo da necropolítica. É infinitamente mais grave.
EXPLOSÃO DE QUERERES
A Internet ligou todas as vozes do mundo. E, com ela, houve uma explosão de quereres, possíveis e impossíveis; de saberes, falsos e verdadeiros; de ambições, generosas ou insuportavelmente egoístas. No que respeita à política, os ditos candidatos "antissistema" prosperam porque falaram o que "seu público" quer ouvir. E a natureza das redes privilegia menos o aprendizado do que a fúria judiciosa. Notem como a retórica violenta costuma traduzir uma espetacular ignorância sobre o tema em debate.
Se errarmos no diagnóstico, certamente se escolherá a terapia inadequada, e os prognósticos apontarão um futuro que não vai se realizar. Como impedir que as conquistas da democracia, inclusive as da democracia econômica — que induz o barateamento e o compartilhamento dos avanços científicos — sirvam de instrumentos para a sua própria corrosão e eventual destruição? No fim das contas se trata de saber como é que vamos evitar que um aparelho celular se transforme numa arma contra o regime democrático.
O Brasil, creiam, está um pouco mais equipado do que os EUA para fazê-lo. Desde que se casem as disposições objetivas — haver um arcabouço legal — com as disposições subjetivas: autoridades policiais e judiciais que tenham a coragem de fazer valer a lei para punir os criminosos que viram na revolução da economia da informação apenas uma forma para ampliar suas mentiras e vilezas. É fundamental impedir que essa particular expressão do crime organizado continue a assaltar o Poder Legislativo.
Quando Elon Musk decide trombar com Alexandre de Moraes e com o STF, temos a personificação, num só homem, do avanço técnico e do atraso ideológico afrontando a democracia, que não é uma ciência, mas um saber social. Só ela pode conter as trevas.
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