Reinaldo Azevedo

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Opinião

Sigilo cai, Bolsonaro fica nu, e todos veem suas vergonhas. Acabou chorare!

O ministro Alexandre de Moraes derrubou o sigilo do inquérito sobre o golpe de Estado, e Jair Bolsonaro ficou pelado, no meio do salão, tentando "cobrir suas vergonhas" — para lembrar o Pero Vaz de Caminha e o primeiro texto em português escrito nestas plagas — com desculpas ridículas, esfarrapadas. Mas, seguindo ainda o Pero, o sujeito está "acerca de exibir ridicularias com tanta naturalidade como tem em mostrar o rosto", que é também a sua cara de pau.

Estamos diante de uma personalidade política capaz, e a história já demonstrou, de falar qualquer escabrosidade. Se flagrado numa falcatrua ou numa falseta, dirá o que lhe ocorrer na hora. Se mentira, tudo bem. Se nem mesmo verossímil for o troço, tanto faz, E talvez aí resida parte de sua força: o estupefaciente pode congelar o juízo crítico: "Opa! Espere aí. Isso parece tão despropositado! Será que estou perdendo alguma coisa ou que algum aspecto da realidade me escapa? Ele teria coragem de mentir assim, tão escancaradamente?"

Teria. E o fez. E a vaca foi pra o brejo.

O ex-presidente concedeu uma entrevista na noite desta segunda, no aeroporto de Brasília, chegando de uma folga em Alagoas. Criador que é, já escrevi aqui, de um novo tipo penal — "o golpe de estado continuado" —, ele pretende inaugurar ainda uma nova prerrogativa para o governante de turno, contanto que seja ele próprio: "o golpe de estado legal".

"REMÉDIO CONSTITUCIONAL" UMA OVA!
O bruto fez as seguintes considerações sobre a sua intenção de decretar estado de sítio para impedir a posse de Lula. Atentem para a fineza argumentativa. Padre Vieira saltará da eternidade para lhe puxar a perna de inveja. Disse:

"Eu conheço a Constituição. O 142 é aquele artigo que está à disposição, né? -- segundo interpretação de alguns juristas, de outro não --, à disposição de qualquer um dos Poderes quando um dos Poderes está exorbitando. E, quando se fala do 142, é uma decisão direta do presidente. Eles vinham discutindo, lá dentro, o estado de sítio. E depois eu falei na Paulista, comecei a conversar por aí... O que é que é estado de sítio? Estado de sítio... Quando ele começa? Quando tem um problema acontecendo, ou prestes a acontecer, de grande proporção, onde o presidente da República convoca os Conselhos da República e da Defesa, dá mais de 20 pessoas, discute o assunto... Após a discussão, então, o presidente encaminha uma mensagem para o Congresso Nacional, pedindo autorização para deputados e senadores, para baixar o decreto de sítio. Ou seja: é um remédio constitucional. E, na verdade, em última análise, podemos dizer que o decreto foi assinado pelo Parlamento; que o presidente pediu autorização para o Parlamento".

É tudo tão estúpido que nem errado chega a ser. Vamos ver. Não há um só profissional do direito respeitável que faça tal leitura do Artigo 142 da Constituição. Inexiste a licença para o emprego das Forças Armadas contra um dos Poderes por vontade de um dos outros dois ou de ambos. Ponto.

Quem vinha discutindo? Que "eles" é esse? Qual seria a justificativa? Recorreria a tal instrumento porque perdeu a eleição? De fato, o presidente, segundo dispõe o Artigo 137 da Constituição, tem de ouvir o Conselho de Defesa e o Conselho da República antes de pedir ao Congresso autorização para decretar estado de sítio. Mas só pode fazê-lo em duas circunstâncias:
I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;
II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

A vitória de Lula nas urnas configurava uma coisa ou outra? Teria de antecedê-lo, necessariamente, o estado de defesa, com verificada ineficácia.

O estado de defesa, por sua vez, disciplinado pelo Artigo 136, pode ser decretado pelo presidente, devendo ser examinado pelo Congresso em 24 horas, depois de ouvidos aqueles dois conselhos. Será que a vitória do adversário é motivo previsto para a sua decretação? Vamos à Carta:
"Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza."

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Havia motivos para isso?

É que Bolsonaro estava de olho em outra coisa.

Define o Parágrafo 1º:
"§ 1º O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:"

Uma das minutas do golpe previa o estado de defesa apenas no Tribunal Superior Eleitoral e nos Tribunais Regionais eleitorais.

O estado de defesa permite:
I - restrições aos direitos de:
a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;
b) sigilo de correspondência;
c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica.

Por que Bolsonaro pensou em decretar estado de defesa ou estado de sítio, que ele chama de "remédios constitucionais"? Porque queria impedir a posse de Lula.

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E por que ele o confessa, assim, tão candidamente?

AMEÇA DE PRISÃO
Bolsonaro faz essa confissão como uma inútil vacina preventiva porque sabe que uma das mais fortes evidências que há contra ele foi fornecida por dois militares graduados.

Assim que Lula venceu a eleição, o então presidente convocou para uma reunião no Palácio da Alvorada os três comandantes das Forças Armadas: Marco Antônio Freire Gomes, do Exército; Carlos de Almeida Baptista Júnior, da Aeronáutica, e Almir Garnier Santos, da Marinha.

Foram apresentadas duas minutas golpistas e se tratou da possibilidade de decretação de estado de defesa e estado de sítio e de um decreto de GLO (Garantia da Lei e da Ordem). Freire e Baptista Júnior se opuseram. Garnier topou. Paulo Sérgio Nogueira, então ministro da Defesa, apoiava a tese golpista.

Houve uma segunda reunião, também no Alvorada, com o mesmo propósito. E aí fala Baptista Junior em seu depoimento à PF:
"Em uma das reuniões dos comandantes das Forças com o então presidente após o segundo turno das eleições, depois de o presidente da República, Jair Bolsonaro, aventar a hipótese de atentar contra o regime democrático, por meio de institutos previstos na Constituição (GLO [Garantia da Lei e da Ordem], ou estado de defesa, ou estado de sítio), o então comandante do Exército, general Freire Gomes, afirmou que caso tentasse tal ato teria que prender o presidente da República".

A PF ainda registrou o seguinte sobre o depoimento de Baptista Júnior:
"Indagado se o posicionamento do general Freire Gomes foi determinante para que uma minuta do decreto que viabilizasse um golpe de Estado não fosse adiante, respondeu que sim; que, caso o comandante tivesse anuído, possivelmente a tentativa de Golpe de Estado teria se consumado".

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Notem quão perto chegamos de uma tragédia homicida. Ou alguém duvida, dada a disposição demonstrada pelos golpistas, que o país viveria um episódio sangrento? É bem possível — mas dá apenas para conjecturar, não para informar, a história que não houve — que a aventura liberticida não tivesse longa duração, mas imaginem o trauma.

ARTIMANHA
Bolsonaro insiste na tese que lhe assopraram já há algum tempo seus defensores -- a saber: se estado de defesa e estado de sítio estão na Constituição, então golpe não havia -- porque sabe que não tem como dizer que os então comandantes do Exército e da Aeronáutica estavam mentindo. Então busca "legalizar" o golpe de estado.

É claro que essa não é a única evidência que há contra ele. Há mais uma penca. Existe, por exemplo, o documento prevendo um "gabinete de crise", formado a partir de 16 de dezembro, depois do golpe de estado. Objetivo principal? Organizar uma nova eleição, mas não mais sob a égide do TSE. Os chefes do troço seriam os generais Augusto Heleno e Braga Netto, o vice derrotado na chapa.

Há o "Plano Punhal Verde Amarelo" — para matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes — impresso no Palácio do Planalto pelo general Mário Fernandes. Em seguida, ele vai para o Alvorada. No dia seguinte, 9 de dezembro, depois de falar com Fernandes, Bolsonaro sai da toca e discursa à sua turma nos jardins do Palácio e anuncia que não deixará o poder, dando a entender que algo vai acontecer. Fernandes comemora o discurso em mensagem a Mauro Cid e diz que Bolsonaro aceitou o "assessoramento" de sua gangue.

Os golpistas fardados, imaginem vocês!, usaram táticas militares para elaborar um plano de fuga para Bolsonaro, que poderia ser posto em prática a qualquer momento, depois do virulento discurso que fez no dia 7 de setembro de 2021 em São Paulo, quando chegou a declarar que não mais cumpriria decisões do Supremo. O então presidente conhecia o conteúdo da carta de teor golpista enviada por alguns oficiais à cúpula das Forças Armadas defendendo abertamente um golpe de estado.

CONCLUO
Como afirma a PF, o dito "Mito" planejou, atuou e sempre teve o controle de todas as ações golpistas. Na equipe, havia alguns esbirros mais ansiosos e ensandecidos do que ele próprio, que reclamavam das suas hesitações. Ocorre que, a despeito da máquina de agitação golpista que foi montada, o Alto Comando das Forças Armadas não se deixou arrastar. E por que Bolsonaro não assinou "o decreto" (sei lá o que entendiam por isso), como queriam seus extremistas? Entre outras razões, porque Freire Gomes o meteria em cana.

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Bolsonaro está pelado no meio do salão. E suas vergonhas estão expostas.

Ganhará um uniforme na Papuda. Como presidiário, ganhará, então, alguma dignidade.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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