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Duas vezes retirantes, pais de Eduardo agora fogem da violência do Rio

Paula Bianchi

Do UOL, em Corrente (PI)

16/04/2015 06h00

Tereza de Jesus, 40, chegou à pequena Corrente (PI), a quase 900 km de Teresina, no dia 6 de abril. Deixou no Rio de Janeiro o quarto e sala que dividia com a família no Areal (uma das áreas mais pobres do conjunto de favelas do Complexo do Alemão, na zona norte da cidade), a rotina de tiroteios e a escadaria na qual viu o filho Eduardo, 10, cair após ser atingido por um tiro de fuzil na cabeça, diante da casa, durante uma ação da Polícia Militar.

Aos 17 anos, quando deixou o Piauí pela primeira vez, rumo a Brasília e depois ao Rio, tinha planos de ajudar a família, esquecer infância e adolescência sofridas, a vida morando com a mãe e os irmãos embaixo da ponte do rio Corrente, que dá nome à cidade, e as noites em que teimava a pegar no sono por falta de comida no prato. Antes retirante da fome, agora retornava a sua cidade natal por conta da violência.

“Tinha dias em que a minha mãe não tinha comida para duas refeições e preferia deixar a gente sem almoço para poder servir o jantar. O dia, quando a gente é criança e fica brincando, passa rápido, mas quem consegue dormir com fome?”, diz. Mãe pela primeira vez aos 15 anos, ela lembra que o dinheiro que ganhava nos pequenos trabalhos que conseguia como babá “mal dava para comprar o leite” para o filho.

Uma vez em Corrente, trocou o conforto do hotel oferecido pelo governo pela casa que a mãe construiu e para a qual pretende voltar. O terreno foi doado pela prefeitura depois que um de seus irmãos morreu afogado em uma enchente. Na casa, são quatro cômodos com piso de chão batido e paredes que alternam pau a pique e alvenaria. No lugar de portas, cortinas. O banheiro, também fechado por uma cortina, fica no fundo do quintal. Uma torneira de plástico branca instalada rente ao teto faz as vezes de chuveiro.

Lá, sua irmã mais velha, Lúcia, divide o espaço com seis dos oito filhos que ainda não saíram de casa. A pia em que Lúcia, que trabalha como lavadeira, lava a louça e as roupas dos clientes, também fica ao ar livre. A geladeira, eletrodoméstico mais novo da casa, foi Tereza quem deu. Desde que a família chegou, os 11 se apertam no espaço.

A cidade, mesmo sendo o maior município da região, com 26 mil habitantes, é menor que o Alemão e seus cerca de 70 mil moradores. E, passados 23 anos após a saída de Terezinha, já não é a mesma. O esgoto ainda corre pelas ruas do bairro e perpassa o quintal da casa da família, mas ninguém passa fome.

Em 1991, segundo dados das Nações Unidas, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do município, que tem a economia baseada na pecuária e na agricultura de subsistência, era de 0,386, similar ao de Serra Leoa, na África. Em 2010, passou para 0,642. “Hoje, muita gente se sente desestimulada pelo desemprego e pela violência urbana. Muitas famílias que tentaram o sul maravilha estão retornando às suas cidades natais”, diz o prefeito da cidade, Jesualdo Cavalcanti, ao comentar o retorno de Tereza e da família.

Desde que chegou, Tereza tem dividido os dias entre a sombra da árvore que encobre boa parte do quintal, onde recebe amigos, vizinhos e curiosos, e as visitas ao sítio do irmão, no interior do município. Planeja plantar uma horta, vender a produção e reformar a casa.

No domingo (12), quando o enterro de Eduardo completou uma semana, a família toda acordou antes das 6h e seguiu junto com parte da vizinhança para o centro da cidade. Terezinha e José puxaram uma caminhada organizada em protesto pela morte até o cemitério. Cobriram o túmulo de cimento, sem lápide nem inscrições, com flores de plástico e velas. À frente dele, cimentaram uma cruz branca com o nome completo de Eduardo.

Depois foram à missa e voltaram à casa de Lurdes para a visita de sétimo dia, quando a casa é aberta para receber familiares e vizinhos. Na mesa montada no quintal, duas bacias cheias de farofa dividiam espaço com biscoitos doces e salgados, chá, café e uma panela de leite fervido.

Os vizinhos chegavam, cumprimentavam Terezinha e o marido, sentavam nas cadeiras espalhadas pelo quintal, comiam e partiam. Lurdes e as filhas se revezavam para manter as garrafas térmicas cheias de café.

"Maravilhoso do centro pra frente"

Na mesma quinta-feira em que o filho morreu, Tereza depositou o dinheiro para que o sobrinho, Josimar, 23, fosse para o Rio de Janeiro. Ela o orientou a pegar o ônibus para Brasília já na sexta e contava com recebê-lo em casa no domingo. Na semana seguinte, ele já começaria a trabalhar ao lado do tio, José Maria, marido de Tereza, em uma construção em Jacarepaguá, na zona oeste da cidade.

“O Rio é maravilhoso só do centro para frente”, diz, ao lembrar que parte da família do marido, que vive em uma favela na zona sul do Rio, e os parentes do Piauí evitavam visitá-la por medo da violência. Muitas vezes, ela e o marido tinham que esperar horas para voltar para casa por causa dos frequentes tiroteios. Ligavam para escola em que Eduardo estudava em turno integral e pediam para a professora ver se havia como esperar que eles chegassem para buscar o menino.

Ela diz não ter mágoa do Alemão, mas se ressente de ter perdido a casa, construída pelo marido, auxiliar de pedreiro e serviços gerais, e demolida para dar espaço ao teleférico. Há seis anos, vive com os R$ 400 do aluguel social. “Se eu já tivesse o meu apartamento ou tivesse ficado na minha casinha, meu filho estaria aqui hoje”, afirma.

Antes da tragédia, o filho mais velho de Tereza, Leandro, chegou a tentar um concurso para ser PM no Tocantins. A mãe torceu contra. Até então, não tinha nada contra a profissão, só medo pela vida do filho. “Deus me livre, isso é muito perigoso.”