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Juíza ser punida com afastamento remunerado "é injustiça", diz conselheira

Em 2007, jovem de 15 ficou presa em cela com cerca de 30 homens em Abaetetuba, no Pará - Marlene Bergamo/ Folha Imagem
Em 2007, jovem de 15 ficou presa em cela com cerca de 30 homens em Abaetetuba, no Pará Imagem: Marlene Bergamo/ Folha Imagem

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

13/10/2016 14h54Atualizada em 13/10/2016 16h21

"Quando eu vi essa notícia, ontem, fiquei revoltada. Porque ‘fazer justiça’, mesmo, é pura força de expressão, é só palavra: na prática, o que a gente vê é uma injustiça grande acontecer".

O desabafo é da conselheira tutelar Maria Imaculada Ribeiro dos Santos, 48, de Abaetetuba, cidade do interior do Pará localizada a cerca de 80 km de Belém. A notícia em questão era sobre a condenação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) à juíza Clarice Maria de Andrade, que recebeu a pena de disponibilidade por ser a responsável pela decisão de manter por 26 dias uma adolescente de 15 anos presa em uma cela masculina com cerca de 30 homens, na delegacia da cidade, em novembro de 2007. Pela pena, a magistrada fica afastada de suas funções por até dois anos, mas recebendo salário.

A jovem, por sua vez, foi vítima de agressões e violência sexual no período e o caso se tornou uma referência de violação aos direitos humanos em presídios no país. O caso só veio à tona graças à denúncia apresentada à época pelo conselho tutelar de Abaetetuba –do qual Imaculada era uma das lideranças e uma das três conselheiras que primeiro constataram a situação da então adolescente na cadeia.

"Magistrados deveriam nos ‘garantir justiça’"

Na decisão tornada pública ontem pelo CNJ, via assessoria de imprensa, a maioria do plenário seguiu o voto do conselheiro Arnaldo Hossepian, relator do processo administrativo disciplinar, que pediu a pena de disponibilidade à magistrada. Em 2010 ela já havia sido aposentada compulsoriamente pelo Conselho, mas a posição acabou revista pelo STF (Supremo Tribunal Federal) dois anos depois.

“`Se fosse um cidadão comum responsável por manter essa menina na situação em que ela foi mantida, certamente estaria na cadeia até hoje –no fim, quem sofreu, mesmo, foi essa menina, que eu nem sei se recebeu alguma indenização do Estado”, afirmou Imaculada, nesta quinta-feira (13), em entrevista ao UOL. “Fiquei indignada de ver a pena dessa juíza, mas acredito que todos os defensores dos direitos humanos deveriam era fazer um grande protesto para que o mundo todo pudesse saber como são tratados os magistrados que, dizem, deveriam nos ‘garantir justiça’”, completou.

PA: Juíza é afastada após manter adolescente em cela com homens

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Por outro lado, a conselheira tutelar reconhece que a denúncia feita à época pelo órgão não trilhou um caminho fácil. Ela própria teve de ficar afastada do trabalho durante três anos para tratar uma depressão, explicou, causada pela “enorme pressão” sofrida pelas conselheiras. Imaculada preferiu não citar nomes.

“Todo mundo nos dizia, na ocasião, que não seria bom mexermos com essa gente graúda porque ela era ‘intocável’. E no Pará, de fato, essas classes parecem mesmo intocáveis, como se ninguém pudesse denunciar os erros delas. Tivemos a coragem de denunciar –mas  a pessoa que denuncia, dependendo de quem é denunciado, é praticamente tratada como réu: vivenciamos isso e sofremos as piores pressões. Fiquei afastada do conselho, me tratando, porque era muita pressão psicológica e as ameaças eram constantes”, relatou.

A conselheira disse não saber mais do paradeiro da adolescente, inserida em programa de proteção do Estado juntamente com a família. “Espero que seja mesmo proteção do Estado, e espero que ela tenha, de alguma forma, superado esse trauma e recuperado a dignidade. Se ela teve um bom acompanhamento psicológico, acredito que está conseguindo; sempre pedi muito a Deus que ela conseguisse vencer. Mas, se não teve, ficam minhas dúvidas.”

Com os cabelos cortados na delegacia, adolescente "parecia um menino"

À época, a ainda adolescente havia sido detida pela suspeita de furtar um celular. Estava com 15 anos, mas foi colocada em uma cela da cadeia da cidade na qual havia outros 30 homens.

Imaculada contou que o caso chegou ao Conselho Tutelar como denúncia anônima dias depois da detenção da garota. A partir daí, juntou outras duas conselheiras, e, na cadeia, foram informadas de que o responsável não estava lá para conversar com elas. “Nossa sorte foi que a secretária do superintendente nos deixou entrar e verificar a situação. Quando abriram a cela, a menina saiu correndo –parecia até um menino, porque os policiais haviam cortado o cabelo dela curtinho”, lembrou. “’Que bom que vocês vieram, eles não acreditam que eu sou menor’ – nunca vou esquecer isso que ela nos disse assim que nos viu. Foi muito duro.”

A conselheira conta que guarda até hoje a cópia da certidão de nascimento da vítima –que foi o modo como conseguiram começar a provar que ela não deveria estar naquela cela.

“Essa certidão é um arquivo do nosso trabalho, mas ficou mesmo, para nós, como um símbolo de que é preciso garantir os direitos da criança e do adolescente. Em dez anos que estou completando de conselho tutelar, de longe, esse é o caso que mais me chocou até hoje à medida em que tivemos de enfrentar toda e qualquer pressão simplesmente para fazer valer o que diz o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente]”, explica.

A cidade de cerca de 150 mil habitantes tinha apenas um conselho tutelar em 2007; hoje são dois. Quando retornou do tratamento da depressão, Imaculada foi reeleita ano passado para um mandato de três anos. É mãe de dois filhos de 17 e 19 anos, à época, ainda crianças. “Eles acompanharam toda essa história comigo”, observa.

Que lição fica do caso que ela ajudou a denunciar, após a sentença desta semana do CNJ? “A lição de que, a cada dia, a gente tem que se manifestar em relação àquilo que está errado –seja a partir de documentos ou de mesmo de notas de repúdio, para que essas classes saibam que existem cidadãos que têm consciência do seu papel, e para que a sociedade desperte e não aceite impunidade em hipótese alguma. É isso que motiva a gente a lutar”, concluiu.

Análise da Defesa

Ao UOL, nessa quarta (12), o advogado da juíza, Alberto Pavie Ribeiro, afirmou que a defesa ainda vai analisar se irá recorrer novamente ao STF. Ribeiro disse que precisará verificar, antes de decidir sobre qualquer medida, se a magistrada já cumpriu o período de afastamento, determinado por esta decisão do CNJ.
 
"Até porque a juíza já permaneceu afastada por um longo período, na época da primeira punição do CNJ, que foi revertida posteriormente pelo Supremo", afirma Ribeiro.
 
O defensor acrescenta: "É preciso verificar se ela já não cumpriu esse tempo de afastamento que a lei preconiza, que é de dois anos no máximo. A partir daí veremos a conveniência ou não de se recorrer ao Supremo", acrescenta o defensor.

Entenda o caso

Conforme o processo, em 7 de novembro de 2007, Clarice recebeu ofício da autoridade policial de Abaetetuba solicitando "em caráter de urgência" a transferência da menina, uma vez que ela corria "risco de sofrer todo e qualquer tipo de violência por parte dos demais".

Apesar da gravidade do caso, porém, somente no dia 20 daquele mês --ou seja, 13 dias depois --a juíza encaminhou ofício à Corregedoria de Justiça do Pará pedindo a transferência para um estabelecimento prisional adequado, segundo os autos.

Em junho de 2013, em entrevista ao portal de notícias da AMB (Associação de Magistrados do Brasil), a juíza disse que foi vítima de uma injustiça --na ocasião, ela havia tido decretada a aposentadoria compulsória por parte do CNJ, que alegou que a juíza foi condenada por ter se omitido em relação à prisão da menor, que sofreu torturas e abusos sexuais no período em que ficou presa irregularmente,

"Fui afastada de uma forma violenta. Fui praticamente arrancada do cargo. Foi uma coisa que mexeu com toda a família. Fiquei doente, enfrentei um câncer e meu marido perdeu o emprego. Mas graças a Deus, temos um Deus poderoso e retomamos nossa vida", afirmou, à época.

Juíza se defendeu, mas acabou desmentida por servidores

Em sua defesa, segundo o CNJ, a juíza disse ter delegado ao diretor da secretaria do juízo a tarefa de comunicar a Corregedoria em 7 de novembro, o que acabou desmentido pelo servidor e por outros funcionários e comprovado por perícia feita no computador da serventia.

Para o relator, "não é admissível que, diante da situação noticiada no ofício --presa do sexo feminino detida no mesmo cárcere ocupado por vários presos do sexo masculino, algo ignominioso-- a magistrada Dra. Clarice, no exercício da jurisdição, tenha simplesmente delegado para seu subordinado a expedição de comunicados pelas vias formais, curvando-se às justificativas que, segundo ela, foram apresentadas pelo servidor para postergar o cumprimento da determinação, o que se deu mais de dez dias após o recebimento do ofício. Evidente, portanto, a falta de compromisso da magistrada com suas obrigações funcionais."

(Colaborou Flávio Costa)