Eu e meu olho esquerdo estávamos no lugar certo, diz jovem cegada em protesto
O plenário Franco Montoro, na Assembleia Legislativa de São Paulo, ficou em silêncio na noite dessa quarta-feira (23) quando a estudante universitária Deborah Fabri, 20, começou a falar. A jovem foi uma das convidadas para o lançamento da Frente Parlamentar em Defesa do Direito de Manifestação e da Liberdade de Expressão –evento marcado pelos relatos sobre a preocupação com abusos recentes da Polícia Militar em protestos organizados por movimentos sociais.
Mas Deborah não estava ali apenas como convidada: há três meses, ela própria sofreu os efeitos da repressão policial ao ser atingida por uma bomba de efeito moral que a fez perder o olho esquerdo. Em 2013, mas atingido por bala de borracha, quem passava pela mesma perda era o fotógrafo Sergio Silva, também no centro de São Paulo. Em agosto, dias antes de a estudante ser atingida, a Justiça paulista decidiu que o fotógrafo tinha "culpa exclusiva" pela situação.
A jovem era uma das que haviam ido à avenida Paulista no último dia 31 de agosto protestar contra o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Na descida em direção à praça Roosevelt, no centro, pela rua da Consolação, ela e outros manifestantes foram dispersados por policiais após adeptos da tática black bloc colocarem fogo em lixo que serviria como barricada contra o avanço da PM. Na mesma noite, um carro da polícia e uma agência bancária foram depredados.
Avessa a entrevistas, Deborah aceitou falar no âmbito da comissão nesse que foi o primeiro pronunciamento dela desde que foi atingida. Mineira de Governador Valadares, a jovem chegou este ano a São Paulo –é aluna na UFABC (Universidade Federal do ABC), em Santo André –e contou que desde 2014 participa de protestos. Mesmo assim, admitiu, o forte aparato policial naquele dia a assustou.
“Foi a primeira vez que eu vi tudo isso, realmente não estou acostumada, não sou daqui, me senti muito intimidada. Foi tudo pacífico, teve batucada, vários movimentos sociais... e eu me sinto em casa, na rua: a rua é do povo, a rua é nossa, tenho o direito de estar lá”, defendeu.
De acordo com ela, os manifestantes desciam em direção ao centro pela rua da Consolação quando ela começou a ouvir barulho de bombas. Com um grupo de amigos, contou, buscou proteção em um posto de combustíveis nas imediações pensando que, em função do risco de explosão, ali os policiais não lançariam bombas. Ao deixar o local, porém, percebeu que não estava fora de risco.
“Uma hora eu virei, continuei andando e vi que havia uma bomba da polícia vindo em minha direção. Ela caiu embaixo de mim, ainda olhei para ela --na hora parece que o tempo para e a vida corre naquele momento; foi um momento rápido, mas que até hoje passa todos os dias na minha memória. E assim que estourou [a bomba], eu vi aquele clarão e então começou a descer muito sangue”, relatou. “Foi aí que eu comecei a gritar para a polícia: ‘Para, já machucou, não tá vendo? Não era isso que vocês queriam? Machucou, para’, e mesmo assim continuou a vir bomba”, afirmou.
Deborah lembrou que recebeu ajuda na enfermaria de uma universidade antes de seguir para um hospital. "Eu pensava na minha mãe, em Minas, na minha família, mas eu sei que eu queria estar lá [na rua, em protesto]; lá é meu lugar, eu e meu olho esquerdo estávamos no lugar certo.”
A jovem ainda contou que, ao chegar ao hospital, foi hostilizada ao ser identificada como manifestante. “A humanidade que eu tive foi na mesa de cirurgia, depois de toda essa violência. Ainda tive depois que fugir do hospital e da minha casa, porque fui exposta de uma maneira absurda, como nunca imaginei.”
"Vocês acham legítimo depredação da minha pessoa?’
No último dia 3, segundo a estudante, ela prestou depoimento na Polícia Militar – em procedimento que apura a ação dos PMs durante o episódio –, mas a situação causou, afirmou, ainda mais intimidação.
“No depoimento que eu prestei, em uma sala cheia de PMs, me falavam que queriam achar o culpado --o policial que jogou a bomba --; queriam detalhes, o que eu vi, como os PMs estavam vestidos. Me mostravam fotos de bombas, ao que eu disse: ‘Como assim? Eu vejo essa bomba todos os dias na minha cabeça e ainda tenho que ver foto?’ Me cansaram com várias perguntas”, relatou.
Mas a suposta busca pela responsabilização do PM, na opinião da jovem, seria só um pano de fundo para as perguntas que viriam na sequência. "Então um policial disse ao que me ouvia: ‘pergunta aí se ela faz parte de movimento social, se ela já foi em outras manifestações em que teve confronto, se ela faz parte de partido’. Isso não interessa. Outro queria saber se ‘eu não sabia que manifestação é assim’, ou se eu não ‘sabia dos riscos’. Disse a eles que a culpada não sou eu, são eles: não sabiam dos riscos de machucar uma pessoa?”, afirmou.
“Foi aí que um deles me perguntou o que eu pensava sobre manifestações, e eu disse que as acho uma forma legítima de expressão popular. Nisso, me questionaram: ‘Você acha legítimo depredação de patrimônio?’ Perguntei a eles qual era a finalidade dessas perguntas, se era me culpar pelo que havia acontecido, e devolvi a pergunta: ‘Vocês acham legítimo depredação da minha pessoa?’ Um PM quis saber se eu queria que pusessem isso no depoimento, e eu disse que sim. Foi pesadíssimo, eu nunca me senti tão intimidada e aí que percebi que não queriam achar culpado algum”, avaliou.
Procurada no final da tarde desta quinta-feira (24), a assessoria de imprensa da PM não informou, até esta publicação, se há processo na Corregedoria instaurado para apurar a agressão à estudante, nem se procede a acusação de que a corporação teria agido de forma intimidadora ao tomar o depoimento da jovem.
Lançamento de frente teve agressões e gritos de “comunistas”
A frente parlamentar recém-criada é composta por 26 deputados estaduais de nove partidos –15 deles, de oposição ao governo Geraldo Alckmin (PSDB). Uma das funções do grupo, segundo o líder da bancada petista na Alesp, Zico Prado, será criar uma comissão que acompanhará a ação da PM durante os protestos de rua. "Queremos abrir diálogo com movimentos e governo estadual para assegurar que o direito de manifestação não seja violado. E vamos levar as denúncias a órgãos internacionais se isso foi transgredido", afirmou.
O lançamento da frente teve confusão causada por manifestantes que chamaram os participantes do evento de “comunistas” e deixaram o local aos gritos de “Viva a PM”. Uma mulher agrediu um adolescente de 16 anos com uma chave de braço. Um major que comandava os policiais que assistiram à cena, de longe, avaliou que a agressão teria sido, na realidade, “um abraço”.
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