Não sei se voltarei a me sentir segura, diz acolhida em programa de proteção à testemunha
A vida da psicóloga Venilce Santos de Oliveira, 49, acabou no dia 7 de abril de 2016. Pelo menos a vida como ela era.
Nessa data, Venilce deixou para trás os objetos pessoais, a casa onde morava, as roupas, a profissão. Acabou também o casamento, assim como a relação, quase diária, com os pais.
A partir desse dia, Venilce passou a rodar por cidades desconhecidas e sem amigos, impedida de falar ao telefone, de receber visita nos apartamentos onde morava e até de fazer compras com um simples cartão de débito --afazeres corriqueiros na vida de todos nós.
Tudo isso para sumir do mapa, para desaparecer, sem deixar rastros de onde poderia estar. Única maneira de escapar das ameaças de morte que recebeu em Riozinho, no interior do Rio Grande do Sul.
Pressionada, acuada, com medo “até da sombra” e alvo preferencial dos integrantes de um grupo acusado de fazer adoções ilegais, entre eles colegas de trabalho na Prefeitura de Riozinho, a funcionária da rede assistencial do município foi integrada, por recomendação do MPE (Ministério Público Estadual), ao Programa de Proteção, Auxílio e Assistência a Testemunhas Ameaçadas (Protege) do Rio Grande do Sul. Foram oito meses de reclusão, findos no dia 8 de dezembro e descritos pela psicóloga com uma única palavra: inferno.
“É muito difícil. Muito, muito, muito difícil. Fiquei com uma sensação de que não era mais quem eu era de fato. E, ao mesmo tempo, que não me tornei a pessoa que deveria ser. Não sei explicar. É uma sensação de vácuo muito desconfortável e assustadora, porque não há nenhuma possibilidade de fazer planos para o futuro. Não tem com o que sonhar, entende? É só pensar que precisa sobreviver àquele dia, e ao outro, ao outro e ao outro também. É só suportar. Ou pedir para sair. Mas aí o risco seria todo meu. Só meu”, relata a psicóloga, que não vê problemas de divulgar sua foto nem seu nome. Os criminosos que estão atrás dela sabem muito bem quem ela é.
A denúncia sobre as adoções ilegais de Riozinho, que também envolvia casos de abuso sexual de menores, foi publicada pelo UOL no dia 15 de março de 2016. Menos de um mês depois, sob pressão de seus algozes, Venilce foi acolhida pelo Protege. Segundo o MPE, o município --com 4.327 habitantes-- registrou 40 adoções suspeitas em um período de dez anos, a maioria delas sem passar pelo Cadastro Nacional de Adoção nem observar os prazos legais para a consolidação do processo.
"É preciso reconstruir a vida, mas as restrições continuam"
A partir da denúncia, a Polícia Civil passou a investigar 20 desses casos envolvendo 11 famílias e um universo de 50 crianças e adolescentes. A suspeita é que os processos foram forjados pelo grupo criminoso que atuava dentro da administração pública municipal, incluindo membros do Conselho Tutelar. O Ministério Público deve oferecer denúncia a quase uma dezena de acusados nas próximas semanas.
O depoimento de Venilce, com informações precisas e documentadas, foi decisivo para a abertura do inquérito que investiga os casos suspeitos, mas deixou sequelas que provavelmente acompanharão a psicóloga pelo resto da sua “segunda vida”. Por exemplo: durante o processo de reclusão, um sobrinho de Venilce morreu de forma trágica, mas ela não pôde amparar a irmã, tampouco comparecer ao enterro do jovem, por conta dos riscos de ser descoberta. Houve autorização apenas para que a psicóloga permanecesse durante 20 minutos no velório.
A pedido do Protege, também foi preciso refazer uma tatuagem que a psicóloga tem no ombro esquerdo porque a marca havia aparecido em uma reportagem de televisão. O sinal poderia ajudar a identificá-la para seus algozes. “A vontade deles [da quadrilha] de ferrar comigo ainda é bem intensa. No sentido físico mesmo. Não me sinto segura e não sei se um dia vou me sentir novamente”, explica ela.
A segunda vida de Venilce começou há pouco mais de dois meses. “No momento em que falam que a gente vai sair, não se consegue pensar em nada que não seja euforia: estou livre! Mas é só uma questão de dias para te dares conta de que é ilusão. É preciso reconstruir a vida. Além disso, as restrições continuam: não posso voltar à minha cidade. Para visitar meus pais, tenho que ter muita cautela. Fui orientada a manter o máximo possível da rotina de quando estava no programa. Um casal de amigos alugou uma casa para mim, porque não posso ter nada em meu nome que seja passível de rastreamento. Estou com dificuldade para retomar o trabalho sem aparecer. Se troco de identidade, perco as minhas formações [ela é graduada e mestre em psicologia]. Pensei até em ir embora do Rio Grande do Sul, mas aí seria uma segunda morte”, diz a vítima da perseguição.
Programa de proteção tem 30 testemunhas por ano
Nem todos os casos monitorados pelo programa são tão extremos como o da psicóloga, afirma o coronel Gilberto Viegas, diretor do Protege no Rio Grande do Sul. Mas a maioria, confirma ele, requer muitos cuidados e uma logística complexa. “Nosso objetivo é interferir o menos possível na vida das testemunhas, durante e depois da proteção, mas sabemos que isso é quase impossível. Há casos em que o grau de risco é muito grande.”
Em 18 anos de atividade [foi criado pelo decreto 11.314, de 1999], o Protege já acompanhou 544 casos --o que dá a média de 30 testemunhas por ano. Nem todas precisaram desaparecer, como Venilce, mas o coronel Viegas estima que em 75% dos casos a proteção teve que ser intensiva.
O programa tem capacidade para acolher 42 testemunhas simultaneamente, além de seus dependentes --seja quantos forem. Por questões de segurança, Viegas não informa quantas pessoas estão sob a guarda do Protege atualmente no Rio Grande do Sul. Mas ele afirma que, contando com as famílias, é um número bem superior ao limite da capacidade. “Já houve caso em que precisamos acolher uma família com oito filhos”, explica o coronel. Nessas situações, é preciso garantir segurança para que as crianças em idade escolar continuem frequentando as aulas, mesmo em outra cidade.
O primeiro requisito para ser integrado ao Protege é estar diante de “ameaça grave”. O prazo máximo de acolhimento, em que as despesas de moradia, alimentação e deslocamento são garantidas pelo Estado, é de dois anos. Mas, em casos extremos, esse período pode ser estendido por mais dois anos. Durante esse tempo, nem mesmo a Justiça tem contato com a testemunha: as intimações para depoimentos ou júri são encaminhadas ao programa com um prazo mínimo de 30 dias, para que a logística de deslocamento e segurança seja viável.
Parte dos custos de operação é bancada pela União, por meio de convênios com o Ministério da Justiça. O Estado também não divulga número de policiais envolvidos nas operações. Em 18 anos, Viegas comemora a inexistência de baixas no programa. “Nosso objetivo não é confrontar os algozes das vítimas, pelo contrário: ao menor sinal de risco, tratamos de deslocar a testemunha para que os níveis de segurança voltem ao adequado”, afirma.
"Fiquei muito tempo sem conversar, acho que desaprendi"
As regras para permanecer no Protege são rígidas. Venilce teve que trocar de cidade três vezes durante os oito meses de proteção, devido a situações de risco que enfrentou. Como medida de segurança, a testemunha não é informada para onde está sendo transferida. Depois de instalada, nos primeiros dias é preciso comunicar ao plantão cada deslocamento fora da base de proteção. Telefone celular, apenas do programa. Internet, só para o essencial. Redes sociais? Nem pensar.
“Assinei um termo de compromisso autorizando livre acesso aos agentes do programa, se isso fosse necessário. Podiam chegar sem avisar, tinham as chaves dos apartamentos e hotéis por onde passei. Era para eu ficar sempre atenta, para não receber ninguém. Se tivesse algum problema de saúde, só podia ser atendida por médico particular. Nada de rede pública, nem de Samu, para não cair no sistema”, explica a psicóloga.
Venilce conta que desenvolveu quatro distúrbios psíquicos nesse período: pânico, estresse pós-traumático, ansiedade generalizada e depressão. Tudo diagnosticado e com medicação prescrita, paga pelo Protege. Apesar disso, enfrenta a retomada com aparente tranquilidade, bom humor até.
“Ainda é um momento muito difícil, pois está muito presente a sensação de isolamento, de abandono. Desconfio de todo mundo. Como fiquei muito tempo sem conversar, acho que desaprendi. Tu te acostumas a ficar quieta, quieta. Então, hoje começo a conversar e a pilha já baixa, só quero ficar sozinha. Perdi muito da habilidade social que eu tinha, de ficar bem em qualquer lugar”, conta.
A psicóloga diz não ter queixas em relação ao programa. “No que era a proposta [de proteção], foram muito dedicados e eficazes”, diz. Nem arrependimento. “Não, nunca me passou pela cabeça. Só lamento que tenha de pagar um preço tão alto por fazer a coisa certa”, explica.
Só na última pergunta de uma conversa que durou mais de uma hora é que a psicóloga deixa transparecer sua angústia. “E a autoestima?”, questiono. Venilce faz uma pausa, chora e pede para encerrar a entrevista.
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