Mulheres presas são abandonadas e julgadas pela sociedade, diz magistrada
A crise no sistema penitenciário brasileiro exposta este ano no Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte tratou de assuntos tão correlatos como a briga de facções, a superlotação nas unidades e as más condições de segurança -- que facilitaram não apenas a fuga, como o massacre de dezenas de detentos --, mas se ateve a um universo exclusivamente masculino. Entre as presas brasileiras, vários problemas são comuns aos dos homens privados de liberdade, com dois adendos: o julgamento da sociedade sobre elas, a partir de critérios de gênero, e o abandono da família.
A avaliação é de representantes de entidades do terceiro setor e de nomes ligados ao Tribunal de Justiça de São Paulo, por onde passam, todos os dias, pedidos de prisão, de concessão de alvará e de toda uma gama de medidas judiciais referentes ao sistema prisional.
Ligada ao tema desde os anos 1980, quando estagiou voluntariamente na antiga Casa de Detenção do Estado, o Carandiru, a hoje desembargadora da 34ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, Kenarik Boujikian, é taxativa ao afirmar que a condenação sobre a mulher encarcerada é, no mínimo, duplicada.
“Porque, ao mesmo tempo em que se tenta tirar dessa mulher, na cadeia, a identidade de gênero dela, ela é também muito mais cobrada por ser mulher. A pressão é outra: não se espera de uma mulher que ela cometa crimes, que dê mau exemplo aos filhos... a cobrança é muito maior”, diz a desembargadora, que completa: “É um vazio na vida dessas mulheres presas, porque, na verdade, elas são abandonadas por completo. As únicas pessoas que dão apoio a elas normalmente são mãe e irmã.”
Em 2001, a desembargadora ajudou a criar uma rede de advogadas e magistradas para discutir a situação das mulheres presas no Estado. De acordo com ela, a criação foi espontânea, depois de uma palestra na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em São Paulo na qual se constatou que as presas das unidades prisionais paulistas não tinham direito à visita íntima –diferentemente dos presos, que conquistaram o benefício em 1984.
“Como no restante da sociedade, não há uma igualdade de gênero inclusive no tratamento que se dá a presos e presas. Há até pouco tempo atrás, por exemplo, sequer tínhamos os dados de quantas mulheres estavam presas. Quando essa rede surgiu, uma das primeiras ações foi uma reunião em Brasília pedindo que tivesse um recorte de gênero dos dados do Infopen, porque não tinha – e isso é extremamente importante para que possamos ter políticas públicas”, cita ela, referindo-se ao Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias.
O primeiro levantamento do Infopen Mulheres foi publicado em novembro de 2015 e constatou que, das 579.7811 pessoas custodiadas em 1.424 unidades prisionais brasileiras, a partir de dados de 2000 a 2014, 37.380 eram mulheres. Por outro lado, o estudo apontou que o aumento médio da população carcerária feminina, no período, era mais que o dobro do verificado entre os homens: 567,4%, contra 220,20% dos presos. O número coloca a população feminina de presas brasileiras em quinto lugar no mundo, atrás apenas de Estados Unidos (205.400), China (103.766), Rússia (53.304) e Tailândia (44.751).
Ainda conforme o Infopen, quase 70% das presas cumprem pena de tráfico, “não relacionado às maiores redes de organizações criminosas” e, em maioria, elas ocupam “uma posição coadjuvante no crime, realizando serviços de transporte de drogas e pequeno comércio; muitas são usuárias, sendo poucas as que exercem atividades de gerência do tráfico”, diz o documento.
“Em geral, as mulheres submetidas ao cárcere são jovens, têm filhos, são as responsáveis pela provisão do sustento familiar, possuem baixa escolaridade, são oriundas de extratos sociais desfavorecidos economicamente e exerciam atividades de trabalho informal em período anterior ao aprisionamento”, completa o estudo.
Para a desembargadora, a existência de mulheres ligadas a facções é uma realidade. “Tanto é verdade que, em São Paulo, começaram a mandar mulheres que a SAP [Secretaria de Administração Penitenciária] considerava de facção para o sistema do RDD [Regime Disciplinar Diferenciado]”, lembra.
“Acho que o errado na nossa política é querer tapar o sol com a peneira e considerar, por exemplo, que admitir a existência do PCC [Primeiro Comando da Capital] o faz se fortalecer. Isso é um erro, porque as facções existem. Se acontece uma rebelião, vai se falar com alguém que é liderança –ou ela existe, ou não existe; se não quiser citar o nome do grupo ao qual ela pertence, isso pouco importa”, disse.
Na avaliação da magistrada, enquanto o Estado brasileiro não rever a política de construção de presídios em detrimento de ações que revisem as penas de acordo com a lei, por exemplo, pouco mudará o encarceramento em massa que cresce, em volume maior, entre as mulheres. “E sobretudo após a lei de crimes hediondos, de 1990, que fez haver um boom no volume de gente presa no país”.
Qual o sentimento sobre a crise atual no sistema penitenciário?
“De tristeza, porque o Estado ainda não tratou devidamente a questão penitenciária. Lembro que, quando fui voluntária na Casa de Detenção, eu havia acabado de sair da penitenciária masculina e 15 minutos depois houve uma rebelião grande, nos anos 1980. Tantos anos se passaram e nós não vemos melhora, mas aumento do encarceramento”, comenta. “Os três poderes precisam enfrentar a questão de que não basta construir presídio, simplesmente”.
Pastoral Carcerária: para presas, ressocialização é utopia
Agente na Pastoral Carcerária, em São Paulo, a advogada Mariana Antonio Santos, 26, faz atendimento a detentas das penitenciárias Feminina da Capital e de Santana, ambas, na zona norte da cidade. As visitas são feitas aos sábados, mas com procura das presas às agentes. A abordagem foca tanto questões sociais e humanitárias quanto religiosas.
A exemplo da desembargadora, a agente pastoral também relata que o abandono das famílias é quase uma regra na realidade das detentas. Mas não é o único problema.
“Como a gente as visita todo fim de semana, acaba conhecendo a história familiar e criando um laço mais estreito com elas. Além do acesso à Justiça ser muito difícil, no sentido, por exemplo, de não se saber do andamento dos próprios processos, da progressão de pena, do livramento condicional, por exemplo, muitas se queixam da superlotação das unidades, da falta de médicos e de remédios e de outros direitos básicos, como um banho decente – e não um banho gelado que vem desde antes do inverno passado”, afirma.
De acordo com a advogada, a situação do banho foi verificada na unidade de Santana, onde as caldeiras, afirmou, não estão funcionando desde ano passado.
“Ninguém pede por um banho de uma hora cada uma, caviar ou cama king size. Mas o direito dessas mulheres não está diminuído porque estão presas –privar a pessoa de um banho morno ou oferecer a ela comida azeda, como já vimos, é punir duas vezes a mesma pessoa. Quando falta o direito básico é ruim para todo mundo, porque isso é dever do Estado, que é quem tutela esse preso”, diz ela . “Ninguém tem que passar dificuldades maiores que as do cárceres”.
A exemplo do que a Defensoria Pública do Estado já relatou ao UOL, mês passado, sobre presídios paulistas para homens, também nas unidades para mulheres na capital o racionamento de comida e o intervalo longo de uma refeição para outra foram apontados pela Pastoral Carcerária como problemas a serem resolvidos.
“Pelo que vemos lá, a última refeição do dia é servida entre 15h30 e 16h – com o trancamento dos portões das celas às 17h e nova refeição apenas no dia seguinte. Elas relatam também má qualidade da comida e racionamento do que é dado”, menciona a agente, que completa: “É como se essas mulheres fossem punidas pelo judiciário e pela sociedade –já que elas perdem contato com a realidade ao serem, muitas delas, abandonadas pelo cônjuge. É toda uma situação de tortura psicológica, com uma panela de pressão delas, que faz a ideia de ressocialização ser uma completa utopia para quem está ali dentro.”
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