Na nova cracolândia, madrugada tem ratos, frutas e humilhação: 'Seu lixo'
Trinta e oito táxis formavam uma fila que se iniciava na porta da Sala São Paulo, região central da capital paulista, seguia pela avenida Duque de Caxias, dobrava a alameda Dino Bueno e prosseguia por mais um quarteirão, na noite de quarta-feira (24). Os taxistas esperavam o fim de um concerto da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) para atender a demanda do público presente.
Segundo os próprios motoristas, antes da operação que o governador do Estado Geraldo Alckmin (PSDB), com auxílio da Polícia Militar, realizou no domingo passado para afastar usuários e traficantes de crack do pedaço, a frota não ultrapassava um limite que naquele dia se abriu, permitindo acesso à rua Helvétia e também um número duplo de carros.
A cracolândia, até a semana passada, começava poucos metros depois do local onde o último táxi estacionava. A reportagem do UOL fez plantão, entre 23h e 6h, naquela região, para relatar a atmosfera dentro do perímetro estabelecido pela operação e também nas proximidades, por onde a cracolândia se espalhou.
O cabeleireiro Silvio Alves de Oliveira, 33, se sentiu seguro para levar seu cão Fred para passear na praça Júlio Prestes, pouco antes da meia-noite, aproveitando-se da calmaria de fachada.
"No Morumbi, se levo meu cachorro e ele faz necessidades na rua, eu recolho. Se essa praça melhorasse, eu até faria aqui", conta. Oliveira aprova a ação da prefeitura, embora saiba que a cracolândia só mudou de endereço.
Desde domingo, a região está sitiada por carros da PM e da Guarda Civil Metropolitana. A farra distópica e o tráfico liberado, de crack e também de cocaína, foram interrompidos entre a praça Júlio Prestes, a rua Helvétia e a avenida Rio Branco, por uma operação criticada por diversas instituições.
A própria secretária de Direitos Humanos do município, Patrícia Bezerra, correligionária do prefeito, na quarta-feira renunciou de seu cargo após chamar a operação de "desastrosa".
Às 23h20, após deixarem a apresentação da Osesp, a advogada Patrícia Fabris, 29, e o arquiteto Gabriel Mazorra, 37, estavam ao lado de um dos táxis. Ambos frequentam concertos realizados no local, mas nunca se arriscaram a dar 20 passos além de sua porta. "Tenho medo", diz Fabris, ao ser convidada para uma volta nas ruas hoje sitiadas pela polícia. "A sensação é que a cracolândia está escondida em algum lugar."
A imagem de zumbis foi a que mais colou aos frequentadores da cracolândia, basicamente porque usuários expressam no corpo e no olhar a aparência de ausência anímica.
Sob efeito do crack, têm as pupilas dilatadas, aumento do ritmo cardíaco e da pressão sanguínea, euforia e hiperatividade. A postura muda com o sistema locomotor tensionado e pode haver espasmos.
Três dias após a operação da prefeitura, o cheiro de fezes estava presente em frente à Sala São Paulo. Como o crack é altamente viciante, provoca necessidade de retornar ao uso quando seu efeito passa (após cerca de cinco minutos). O abandono de noções de higiene e civilidade reflete-se no ambiente que usuários ocupam, ali transformado em banheiro a céu aberto.
Infestação de ratos
O acúmulo de lixo e de excrementos, naquele pedaço agora esvaziado, estimulou uma notável infestação de ratos. As tocas estão espalhadas pela Júlio Prestes, e os animais passam sem timidez. Aproximam-se de quem passa, como se estivem habituados com a presença de seres humanos.
"Ratos são como os pombos", compara o biólogo Randy Baldresca, membro permanente da comissão de Meio Ambiente da Câmara Municipal de São Paulo e diretor técnico da Biópolis, empresa especializada em controle de pragas urbanas. "Se eles se habituam com a presença humana, eles perdem o medo e se aproximam. Com certeza ali eles se acostumaram a conviver com gente", atesta.
Reportagem passa por revista policial e de traficante
Durante a caminhada madrugada adentro, o repórter do UOL passou pela revista de dois policiais. Eles fizeram a abordagem sem sacar a arma, apenas com a mão amparada no coldre. Pediram para que levantasse a blusa e a camiseta. Perguntaram de onde vinha e para onde estava indo --foi nesse momento que a reportagem se identificou. Houve uma breve explicação sobre a operação, e a liberação foi rápida.
Não foi a única revista da madrugada, tampouco a única abordagem: poucas horas depois, o jornalista novamente foi revistado, desta vez por um traficante. Entrava no perímetro que a cracolândia, ou um fluxo de cerca de 300 pessoas, ocupa desde quarta-feira, na praça Princesa Isabel, ao lado de um terminal de ônibus e a duas quadras de seu antigo ponto.
Foi acompanhado por um homem que não tinha mais de 40 anos. O acordo era que ele comprasse um cachimbo, e por isso ganhasse um trocado. Ele apanhou o dinheiro e saiu por caminhos quebrados dentro da multidão. O homem conhecia muita gente e parava para pedir informações. Um traficante, usando uma peruca feminina azul, interrompeu a corrida.
Enquanto passava a mão pelos braços e pernas do repórter, ironizou: "Não estou te revistando, OK? Os únicos que fazem revista aqui são os policiais".
Uma "feira" que vai de frutas a bugigangas
A cracolândia não é homogênea como tantos descrevem. Há uma mistura entre homens e mulheres, jovens e velhos, pessoas de diferentes classes, embora prevaleçam pobres. Durante a madrugada, também passou uma criança.
As pessoas que entram em seu território o fazem com passos decididos e desaparecem naquela espécie de feira, onde também há barracas de frutas, de cigarros, de roscas, pães e biscoitos, de roupas usadas, bugigangas eletrônicas e até de adesivos da Hello Kitty.
Alguns usuários levam consigo aparelhos de som movidos a pilha. A cracolândia não é apenas tristeza, comporta brincadeiras, risadas, música sertaneja, velhos hits tocados pelas rádios, funk e rap. Um grupo de adolescentes, naquela madrugada, fez uma fogueira com madeira e papéis. Divertiam-se entrando e saindo de um carrinho de supermercado.
Os dramas são recorrentes, porém, e vão se agravando conforme a manhã se aproxima e a praça vai ficando um pouco menos cheia de gente.
A sujeira se espalha e sem-teto dormem, cobertos ou não, sob o relento. Às 3h20, um sujeito entrou decidido a arrancar uma mulher dali. Sob a luz das velas, pegou-a pelo pescoço, enquanto ela gritava: "Me deixa, me deixa". Pela conversa, era um amigo ou um parente quem fez o flagrante. A mulher saiu arrastada.
Quando o dinheiro acaba, também é possível identificar o desespero dos usuários, que chegam a beliscar o asfalto procurando restos de pedras.
Um rapaz entrou em área cercada por varais e cobertores, entregou o dinheiro para um jovem traficante que usava toalha na cabeça, mas não recebeu a pedra prometida em troca e começou a exigir o produto insistentemente.
O traficante, sentado atrás de uma mesa repleta de pedras, disse a ele que não se recordava de ter recebido dinheiro nenhum. A tensão foi crescendo entre os dois. Cerca de cinco minutos depois, sob ameaça de violência, o comprador afastou-se. Depois, voltou, para insistir por mais um ou dois minutos. Sem nenhum sucesso.
O conflito com quem não pertence ao grupo é permanente. Não foi possível conseguir um quarto em três hotéis diferentes com vista para a praça. O argumento era de que estavam com os quartos ocupados. Os recepcionistas não permitiram entrar no estabelecimento para ser atendido. As informações foram passadas por frestas entre as portas de vidro.
Conforme o dia clareia, a cracolândia perde volume. Em seu caminho para outro lugar, um homem maltrapilho e cujo caminhar entregava o uso excessivo de crack começou a discutir com um funcionário do terminal de ônibus.
O funcionário não ficou calado, e o embate durou cerca de cinco minutos. Com a proteção de grades, ele desferiu vocabulário violento contra aquele que considerava ser um adversário, provocando-o inclusive com menções ao suposto tamanho de seu órgão genital. "Olha para você, seu lixo. Você é um lixo de gente, olha seu estado. Daqui a pouco eu vou para casa, vou comer uma comida quentinha e vou dormir em uma cama macia. E você?"
Segundo a prefeitura, "as barracas e pessoas que estão na praça Princesa Isabel são monitoradas pela Polícia Militar. Não há o uso de barracas para a venda de drogas nem o controle do território pelo crime organizado, como havia anteriormente na cracolândia”. A reportagem não testemunhou nenhum tipo de abordagem na madrugada de quarta para quinta na praça, nem da polícia nem de assistentes sociais.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.