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Birra, rebeldia e má-formação cerebral: por que casais na fila da adoção desistem de crianças

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Imagem: Thinkstock

Marcos Sergio Silva

Do UOL, em São Paulo

02/07/2017 04h00

Lucas e Thiago (nomes fictícios) têm 7 e 8 anos. São irmãos e convivem com o abandono desde que tinham 5 e 6, respectivamente. O último deles aconteceu há um mês. Em dois anos, eles perderam os pais biológicos, e dois casais que estavam na fila de adoção desistiram de levá-los para casa na reta final do processo. Eles saíram do Cadastro Nacional de Adoção, já que estavam em processo de adoção, e não sabem se um dia voltarão.

O caso dos dois meninos é uma parte dolorosa do processo de adoção: a rejeição pelos candidatos a pais adotivos. Muitas vezes, acontece quando as crianças já estão no novo lar e são devolvidas para a instituição que os abrigou enquanto elas não tinham um ente cuidador.

Os motivos para isso são desde problemas que qualquer genitor enfrentará com um ser em desenvolvimento --birras, brigas, palavras atravessadas, recusas em comer-- até outras complicações, como a descoberta de uma má-formação cerebral em um bebê.

“As pessoas encaram a adoção de forma apaixonada e romântica e se esquecem do mundo real. Se a adoção não foi consumada, é porque não houve preparo suficiente de quem quer adotar”, afirma o desembargador e vice-coordenador da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, Reinaldo Cintra Torres de Carvalho. “Isso depende da consciência que o casal tem de todo o processo e de o setor judiciário fazer uma preparação da adoção como se espera.”

Dois casais, dois processos

O abrigo, situado em uma cidade do interior gaúcho (o nome do município e os dos garotos foram preservados a pedido do lar que os acolheu para não prejudicar um novo processo de adoção), recebeu os irmãos em 2013.

O Rio Grande do Sul é o Estado com a segunda maior taxa de crianças para adoção (15,16%, inferior aos 21,03% de São Paulo) entre as 7.714 do Cadastro Nacional de Adoção. “[Os meninos] passaram por todos os testes psicológicos”, afirma o promotor da Vara de Infância e Juventude Luís Augusto Gonçalves Costa, 40, que cuida do caso.

“A convivência acontece primeiro dentro do lar, depois saindo no fim de semana e ficando com a família. O primeiro casal parecia apto a adotar. No último estágio, antes da adoção, quando iam residir com o casal, [os candidatos a pais] começaram a relatar dificuldades, mas dificuldades normais --desobedecer, fazer birra, não querer comer”, diz Costa, que até brincou: “Se fosse assim, ia devolver meus filhos”.

Para o bem dos irmãos, eles voltaram para o abrigo. “Eles são apenas crianças, né?”, afirmou a assistente social do abrigo, que não quis se identificar.

Na segunda vez, o casal que resolveu adotá-los alegou as mesmas desculpas. “Mas eles nem sequer procuraram a equipe, nem deram a oportunidade, nem quiseram restabelecer a possibilidade de um vínculo. É um trauma. As crianças nem queriam ouvir mais falar em adoção”, diz.

[Os candidatos a pais] começaram a relatar dificuldades, mas dificuldades normais --desobedecer, fazer birra, não querer comer. Até brinquei: 'Se fosse assim, ia devolver meus filhos'

Luís Augusto Gonçalves Costa, promotor da Vara de Infância do RS

O promotor voltou a entrar em ação, desta vez diretamente na Justiça. Pede, no TJ do Rio Grande do Sul, que os dois casais arquem pelos problemas que causaram às crianças. No primeiro processo, foi pedida uma indenização por dano moral, a ser depositada em juízo e que só poderia ser sacada quando as crianças completarem 18 anos. No segundo, além da indenização, pede pensão alimentícia também até que completem a maioridade.

“O segundo casal estava em um estágio mais avançado da convivência. O primeiro [nos] procurou para fazer um acordo, porque sabe que errou. Achavam que podiam adotar e viram que não era possível. Eles admitiram o erro. A gente acredita que houve um dano moral inimaginável para essas crianças. Elas foram rejeitadas três vezes --a primeira pela família natural”, afirma Costa.

“Em 13 anos na Vara da Infância, este é o quinto caso. Nos outros, a gente colocou [as crianças] em outras famílias, sem um dano como esse. A vida segue para o casal, mas as crianças continuam abandonadas.”

Indenização de R$ 22 mil

Há oito anos, o promotor da Vara de Infância de Juventude de Uberlândia (MG), Epaminondas da Costa, liderou dois casos que viraram uma marca na história de devolução de adotados. Ele conseguiu que o TJ de Minas obrigasse os casais que desistiram da adoção a pagar indenizações.

“Na mesma semana, tivemos uma menina e um adolescente devolvidos”, diz o promotor. “A diferença é que a menina ficou sete meses com os adotantes no chamando estágio de convivência --ela havia sido foi colocada sob a guarda do casal. Puseram muita expectativa, porque apresentaram para a família, mudaram o primeiro nome da criança e foram chamados de pai e mãe. O fato é que, depois de sete meses, depois de o casal dizer que tudo estava maravilhosamente bem, a criança foi entregue de volta à instituição de acolhimento, sem dizer qual o motivo.”

Apresentaram para a família, mudaram o primeiro nome da criança e foram chamados de pai e mãe. Sete meses, a criança foi entregue de volta à instituição de acolhimento

Epaminondas da Costa, promotor da Vara de Infância de Uberlândia (MG)

Segundo a advogada do casal, Ângela Parreira de Oliveira Botelho, o erro estava na concepção da adoção --muito rápida, segundo ela. "Eles visitaram as crianças em um fim de ano, a convite de um amigo. Essa criança gostou deles, e eles também. A casa acolhedora liberou para passar o Natal com a criança. Eles conviveram por um mês, e a Justiça liberou a adoção antes do tempo", diz. 

Os problemas, diz Ângela, vieram a seguir. "Eu os ouvi: foi muito sofrido o tempo em que eles tentavam adaptar essa criança. Fizeram o que era possível para ambientá-la no lar deles. Ao longo do tempo, sentiram que a criança não tinha apego a eles. Vendo a rejeição da criança, às vezes por não ver neles os pais legítimos, retornaram ao Judiciário para poder contornar essa situação. Chegou à conclusão de que eles não podiam adotar", afirma.

Depois de devolvida, a menina, de oito anos, sofreu, segundo o processo no Tribunal de Justiça mineiro: demonstrava sinais de confusão, referindo-se a si mesma ora pelo nome legal ora pelo adotado pelo casal, ao qual passou a se referir como seus pais. “Foi como devolver uma mercadoria”, diz Epaminondas.

O casal foi condenado pelo TJ-MG a pagar uma pensão alimentícia de 15% de seus rendimentos líquidos até que a menina complete 24 anos. Ela foi adotada novamente um ano depois e hoje vive com seus pais adotivos na Itália.

Segundo a advogada do casal, eles "ficaram angustiados com o processo, durante as audiências". "A angústia deles foi grande em decidir pela devolução da criança. Eles são funcionários públicos que precisaram mudar de residência. Sofreram um dano irreversível. Eles fizeram uma mudança drástica na vida deles", diz Ângela.

A angústia deles foi grande em decidir pela devolução da criança. Eles são funcionários públicos que precisaram mudar de residência. Sofreram um dano irreversível

Ângela Parreira de Oliveira Botelho, advogada do casal que devolveu criança

O outro caso foi o de um menino adotado com a irmã –uma condição nos processos– quando tinha quatro anos, em 1999. Dois anos depois, ele foi devolvido. Nos nove anos seguintes, o casal e a criança tentaram a adaptação, em vão. “Isso o impediu de ter outro lar", diz o promotor, já que o menino já tinha 13 anos no fim do processo.

“Depois de o juiz dar a sentença de que eles eram pais da criança, que fizeram registro no cartório com o nome dos pais adotivos, ele passou a ser maltratado até que os adotantes o levaram de volta ao lar [de acolhimento]”, afirma Epaminondas. Ele era chamado de “negrinho”, segundo ele.

A indenização estipulada --e já transitada em julgado no TJ-MG, ou seja, não cabe mais recurso-- foi de R$ 15 mil mais a pensão alimentícia até os 24 anos (hoje, o rapaz tem 19 anos e continua morando no abrigo para adoção). Com a correção monetária, passou a R$ 22 mil. A irmã continua com o casal.

Má-formação e devolução

Jorge (nome fictício) ainda era gestado quando a mãe natural decidiu entregá-lo para um abrigo de adoção em Patrocínio (MG). Um casal de lavradores o adotou em 2008, logo que nasceu. Vinte dias depois, a mãe natural ajuizou uma ação não reconhecendo a adoção. O imbróglio se arrastou por dois anos, até que os adotantes descobriram que Jorge tinha uma doença congênita: má-formação cerebral.

No fim de 2010, o casal adotante quis entregá-lo de volta à mãe natural, mas esta recusou e disse que só gostaria de visitá-lo. Jorge ficou com uma terceira genitora --uma “pessoa idônea”, segundo o TJ-MG.

“O ato ilícito, que gera o direito à reparação, decorre do fato de que os requeridos buscaram voluntariamente o processo de adoção do menor, obtendo sua guarda durante um lapso de tempo razoável e, simplesmente, resolveram devolver imotivadamente a criança, de forma imprudente. Assim, defere-se o pedido de condenação dos requeridos ao pagamento de obrigação alimentar ao menor, enquanto viver, em razão da doença irreversível que o acomete”, afirmou, em sua decisão, a desembargadora Hilda Maria Pôrto de Paula Teixeira da Costa, do Tribunal de Justiça mineiro.

Crianças com deficiência mental são as com maior taxa de rejeição entre os 40.014 candidatos a adotantes do Cadastro Nacional de Adoção. Apenas 2,98% aceitam crianças com essas anomalias --no universo de quem está disponível para adoção, o percentual de crianças nestas condições é de 8,6%.

"Essas adoções são via de regra feitas de forma precipitada, cuja análise não levou em consideração os aspectos psicológicos do casal. Não é a lei que vai instigar esses detalhes, mas o juiz vai determinar para qual família essa criança vai. Vai se servir de seus colaboradores, e todos devem estar concertados, como uma orquestra. O maior interesse da criança não é difícil de apurar", afirma a professora de direito internacional da USP (Universidade de São Paulo) Maristela Basso. "O ECA impõe, o Código Civil já impõe. Os juízes têm de ter mais receio para tomar as decisões. Todo o cuidado é pouco, pois se trata de uma criança muito vulnerável."

O desembargador e vice-coordenador da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, Reinaldo Cintra Torres de Carvalho - Divulgação/TJ-SP - Divulgação/TJ-SP
Imagem: Divulgação/TJ-SP

As pessoas encaram a adoção de forma apaixonada e romântica e esquecem do mundo real. Se a adoção não foi consumada, é porque não houve preparo suficiente de quem quer adotar

Reinaldo Cintra Carvalho, vice-coordenador de Infância e Juventude do TJ-SP

“Falta preparo”

Desde 2002 atuando em Varas de Infância, o desembargador do TJ-SP Reinaldo Cintra Torres de Carvalho afirma que, para entender uma devolução em caso de adoção, é preciso enxergar o problema dos dois lados: o de quem quer a adoção e do responsável em preparar essa pessoa no processo.

“A vontade adotiva nem sempre é a que conduz à adoção. É preciso estar preparado para o exercício da paternidade. E cabe ao Judiciário fornecer [essa preparação]”, afirma.

Ele compara: diferentemente da gestação biológica, não há uma transformação do corpo e o preparo real de uma vida que vai nascer. “Na adoção, existe uma expectativa irreal só fundada no desejo e no sonho, dissociada da realidade. Ela precisa ter consciência de que não é um dia para outro que o amor vai aparecer. Na gestação biológica, esse preparo é natural. Na adoção, é intelectual.”

Para ele, não há ausência de consciência de responsabilidade, mas de realidade. “Quando só imagina e sonha, não enxerga os problemas que têm que enfrentar. Só enxerga o lado bacana de uma criança que vai dar beijinho e dar carinho. Não pensa que fica doente, que fala 'não' para você, que não vai querer comer o que dá para ela. Elas deixam de se preparar para situações do cotidiano.”

“A frustração na falha de adoção não pode ser debitada à criança e ao adolescente, mas à falta de preparo da pessoa que recebe quem adota. Isso pode ser debitado à falta de informação.”