"A todo momento, um enquadro": favela resiste a cerco policial e disputa jurídica
A poucos quarteirões da cracolândia, no centro de São Paulo, centenas de famílias que vivem naquela que se autointitula como a "última favela da região" sentem na pele o impacto da recente ofensiva da polícia no local.
Parados com frequência para serem revistados, os moradores da Favela do Moinho, que há cerca de 30 anos ocupa uma área de aproximadamente 6.000 m² embaixo do Viaduto Engenheiro Orlando Murgel, se veem acuados. E reclamam do que consideram uma criminalização da comunidade.
"A todo momento, é um enquadro. Eles estão invadindo a favela e vindo com essas histórias de que é um local de abastecimento de drogas da cracolândia. Eles jogam tudo nas costas da favela, como se ela fosse vilã. Mas não veem os carroceiros, as mães grávidas, crianças, idosos que moram ali. Só veem como ponto de tráfico", protesta Jaquisson Soares Bispo, mais conhecido como o rapper Ducorre, 28, que vive na comunidade há 13 anos.
A Secretaria de Segurança Pública do Estado diz que as ações na favela têm como objetivo a preservação da ordem pública. "Por ser de conhecimento da polícia a movimentação do tráfico na região, os setores de inteligência monitoram a atividade criminosa na comunidade, inclusive para proteger os moradores que não se envolvem com esses delitos", afirmou o órgão, em nota ao UOL.
Mas, para Alessandra Moja, 33, que há mais de dez anos atua como uma das principais lideranças da associação de moradores da favela, o objetivo da ofensiva policial é responsabilizar a comunidade pelo tráfico de drogas na região e, assim, justificar a remoção dos moradores do terreno. A medida abriria espaço para novos empreendimentos na área onde vivem hoje cerca de 1.200 famílias, segundo a associação.
"Eles começaram a bombardear o Moinho com essa história da cracolândia. Fizeram uma operação com drones, helicópteros, força tática e, depois, colocaram duas viaturas na porta da favela", afirma Alessandra.
A todo momento, é um enquadro
Ducorre, rapper, sobre a Favela do Moinho, onde vive
Assim como outros moradores, ela diz ter registros de abusos cometidos pela polícia na comunidade e cita como exemplo a morte de Leandro Souza Santos, 19, no fim de junho.
Os moradores afirmam que ele era usuário de drogas e correu ao ver a chegada de oficiais da Rota (grupo de elite da Polícia Militar) em ação na favela, mas dizem que ele não carregava armas. Segundo os relatos, o jovem foi perseguido, torturado e assassinado pela polícia dentro de um barraco.
Os policiais envolvidos no caso disseram que Leandro resistiu a uma abordagem, tentou fugir e trocou tiros com os homens da Rota. A Secretaria de Segurança diz que o caso está sendo investigado pela Corregedoria da PM e que os oficiais citados foram transferidos para "serviço administrativo" enquanto durar o inquérito.
A secretaria afirma ainda que, durante operação na região da cracolândia, em maio, prendeu Leonardo Moja, apontado pela polícia como "líder do tráfico na Favela do Moinho".
O acusado é irmão de Alessandra e teve prisão preventiva decretada pela Justiça no último dia 20. Ela diz que a prisão de Leonardo foi arbitrária e que é mais um reflexo da tentativa de rotular a favela como única responsável pelo fornecimento de drogas para a cracolândia.
Incêndios geraram investigação e um muro
Alessandra mora na Favela do Moinho há 23 anos e conta que já teve dois irmãos mortos pela polícia em circunstâncias nunca esclarecidas.
Em sua atuação junto à associação de moradores, ela mesma também viveu momentos de confronto com forças policiais nos últimos anos e chegou a ser ferida com uma bala de borracha e bombas de gás lacrimogêneo.
Em dezembro de 2011, viveu duas grandes emoções na favela: a alegria pelo nascimento de sua filha mais nova e a tristeza por um incêndio que destruiu centenas de barracos, quase um terço de toda a comunidade.
As autoridades contabilizaram duas mortes, mas os moradores dizem que o número de vítimas foi maior. "Até os bombeiros choravam e diziam que tinha mais gente lá [nas chamas], mas que eles não tinham o que fazer para resgatá-las", diz Alessandra.
Poucos meses depois, em setembro de 2012, um novo incêndio na Favela do Moinho atingiu cerca de 80 barracos, provocou pelo menos uma morte e deixou aproximadamente 300 desabrigados.
"Na segunda vez, para mim, foi mais doloroso. Eu perdi minha casa", conta o rapper Ducorre. "Tinha acabado de chegar de viagem. De repente, quando acordo, vejo as chamas estalando. Só deu tempo de eu pegar o meu filho, os documentos e umas roupas."
Os incêndios chegaram a ser atribuídos a uma briga de casal e à ação de usuários de drogas, mas nenhum laudo conclusivo esclareceu os dois casos. A falta de investigações mais consistentes alimentou a desconfiança de moradores de que as chamas teriam sido resultado de atos premeditados.
Em 2012, diversas outras favelas de São Paulo também sofreram com incêndios em série, em especial na região do centro expandido. O Ministério Público do Estado chegou a abrir uma investigação para apurar se os incêndios tinham alguma relação com os interesses dos setores público e privado de construir novos prédios no entorno das comunidades atingidas, mas o inquérito não avançou.
Pouco depois do primeiro incêndio na Favela do Moinho, a prefeitura ergueu um muro, que tinha por objetivo isolar a área do antigo prédio da fábrica do Moinho Matarazzo --edifício abandonado onde o fogo teve início e que foi demolido porque teve a sua estrutura comprometida.
A parede de concreto, batizada pelos locais de "muro da vergonha", acabou derrubada pelos próprios moradores em agosto de 2013, após um laudo dos bombeiros apontar o risco que ela representava por bloquear uma importante rota de fuga para a comunidade no caso de um novo incêndio.
Disputa jurídica começou em 2008
A área ocupada pela Favela do Moinho, que fica junto a uma linha de trem da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), pertencia originalmente à antiga RFFSA (Rede Ferroviária Federal).
Em 1999, por conta de uma dívida de IPTU, o terreno foi a leilão e acabou arrematado por duas empresas privadas. No entanto, o resultado foi contestado pela União --que ficou com os bens e dívidas da extinta RFFSA.
Em 2008, com o apoio jurídico do Escritório Modelo da Faculdade de Direito da PUC-SP, os moradores da favela entraram na Justiça com uma ação coletiva de usucapião e conseguiram uma decisão provisória que assegura a posse do terreno até o julgamento final da ação.
A disputa judicial pelo terreno se arrasta desde então e, nos últimos meses, a prefeitura intensificou os esforços para tentar cassar a liminar e retomar a posse da área. Reportagem publicada pela "Folha" no início do mês indica que o assunto se tornou uma das prioridades da gestão de João Doria (PSDB).
Procurada pelo UOL, a prefeitura informou que "desenvolve estudos para a solução dos problemas habitacionais da chamada Favela do Moinho".
Em nota, a Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação) diz que, em fase ainda embrionária de projeto, técnicos atuam na identificação de melhores alternativas para os moradores do local. "Este trabalho será apresentado à sociedade assim que existirem propostas concretas", acrescenta o texto.
Os moradores insistem na disputa pela regularização e urbanização da favela, cobram o direito de acesso a água, luz e esgoto e prometem resistir a possíveis tentativas de remoção. Para a maior parte deles, deixar o Moinho é perder a chance de viver em um lugar com mais opção de emprego, assistência médica, creches e escolas como é o centro de São Paulo.
Intérprete da música "Favela (Falta de Verba Latino-Americana)", inspirada na história dos moradores do Moinho, Ducorre insiste que os moradores vão lutar para permanecer no local.
"Tem pessoas ali que não têm condições de sair da favela. A maioria é de carroceiros, famílias. É o lixo que dá dinheiro para eles. Muitas vezes, são eles que limpam o centro de São Paulo, recolhendo e reciclando o lixo. É o ganha-pão deles. E somos todos tratados como lixo", protesta o rapper.
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