Cabo Anselmo afirma não sentir culpa por entregar militantes à ditadura
Há quatro décadas, ele era um agente duplo que ajudou a ditadura militar a prender ou matar cerca de 200 pessoas —o cálculo foi feito por ele mesmo. Hoje, sem documentos (o cartório de sua cidade pegou fogo), exonerado da Marinha, José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, afirma não sentir culpa pelo que fez. Mais do que isso, diz que já foi "anistiado" por Deus.
"Colaborei com o Estado legal, com a pátria, com a nação, consciente de que a Ditadura do Proletariado ou qualquer ditadura é contrária à liberdade. A motivação maior foram valores cristãos incutidos na infância", afirmou Cabo Anselmo ao UOL, em entrevista por e-mail.
A trajetória do militante de esquerda que se tornou o principal colaborador dos órgãos de repressão do regime militar é revisitada no livro "O Massacre da Granja de São Bento", lançado na última terça-feira (29). De autoria do jornalista pernambucano Luiz Felipe Campos, a obra traz informações inéditas a respeito da operação que resultou na morte de seis militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), em janeiro de 1973, no Grande Recife, e teve participação decisiva do agente duplo.
O jornalista reconstitui por meio de documentos e relatos de personagens da época como o agente duplo, o "Kimble" para os órgãos de repressão, atraiu para Pernambuco o maior número possível de militantes para a emboscada executada pelo delegado Sergio Fernando Paranhos Fleury. Entre as vítimas estava Soledad Barrett, então companheira de Cabo Anselmo.
"Vocês sabiam que milhares de sobreviventes tiveram ocasião, mas fizeram escolhas diferentes da militância armada? Culpa? Pelas escolhas de pessoas maiores [que] abraçaram a guerra internacionalista para matar ou morrer?"
Culpa? Pelas escolhas de pessoas maiores [que] abraçaram a guerra internacionalista para matar ou morrer?
Cabo Anselmo
Como mostra o livro de Luiz Felipe Campos, Cabo Anselmo teve sua identidade militar cassada quando foi expulso da Marinha, em 1964. Ele ficou conhecido nacionalmente por protagonizar uma revolta de marinheiros em março daquele ano —episódio que foi um dos pretextos usados pelos militares para o golpe de Estado.
"Entrou na clandestinidade e perdeu definitivamente o direito ao registro quando começou a colaborar como agente duplo da repressão", escreve Campos. O ex-agente duplo tentou, sem sucesso, reaver a identidade militar, após a redemocratização.
Além disso, o cartório de sua cidade natal, a sergipana Itaporanga D'Ajuda, desapareceu em um incêndio e ele não pôde recuperar sua certidão de nascimento.
"[Cabo Anselmo] é uma não pessoa. Não tem emprego, não tem documentos, não tem como provar sua nacionalidade brasileira", afirma o escritor Olavo de Carvalho, no prefácio do livro "Minha Verdade", autobiografia do agente público.
Cirurgia plástica
Logo após o massacre no Grande Recife, Cabo Anselmo foi levado para São Paulo. Ele afirma ter pedido a Fleury que Soledad Barrett, sua companheira, fosse poupada, o que não ocorreu. Ele classifica como "profissional" seu relacionamento com um dos principais agentes da repressão da ditadura militar. E o elogia:
"A imagem que guardo dele é de um profissional competente, destemido, um líder para os membros de sua equipe, que não hesitou em cumprir ordens para executar as tarefas mais dolorosas. Estava na frente de combate e não atrás de uma escrivaninha".
Após o fim do trabalho para os órgãos de repressão, ele afirma ter sido ajudado durante somente "quatro anos" por empresários amigos, com os quais ainda mantém contato. Jurado de morte por todas as organizações guerrilheiras, ele se submeteu a uma cirurgia plástica, arranjada por Fleury.
Meninos! Sobrevivi até esta idade de 77 anos com o meu trabalho
Cabo Anselmo
"Depois disso, Anselmo voltou a prestar serviços à repressão pelo menos uma vez. Encapuzado, palestrou para um grupo de militares sobre técnicas de guerrilha", mostra Campos, em seu livro. Montou também uma consultoria, na qual ajudava "clientes a identificarem tendências políticas consideradas subversivas em seus funcionários".
Quando Cabo Anselmo virou agente duplo?
Entre as organizações de esquerda, já circulava a desconfiança de que ele havia mudado de lado, antes mesmo de ser preso por Fleury em São Paulo, em maio de 1971. "Esta data é um marco porque, a partir daí, praticamente todos os militantes que se encontraram com Anselmo foram presos ou mortos pela repressão", afirma Campos.
Seis meses depois desta detenção, já como "agente Kimble", Anselmo viajou para Santiago do Chile para espionar os companheiros de luta armada. Voltou ao Brasil, com um diário de viagem denominado "Relatório de Paquera", que foi entregue a Fleury.
Pedido negado
Em maio de 2012, a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça negou o pedido de reparação do ex-marinheiro. Dos 60 mil casos analisados, até aquele momento, este foi o primeiro que tratou de uma pessoa que atuou tanto como colaborador do regime militar quanto na resistência à ditadura. O pedido foi rejeitado por 12 votos a zero.
"A comissão foi integrada exclusivamente por pessoas filiadas à ideologia marxista. Foi uma 'ação entre amigos' privilegiando os militantes e ideólogos da ditadura comunista", afirma Cabo Anselmo.
A vida já foi vivida e não temo a morte. É uma velha amiga diante da qual já estive algumas vezes
De paradeiro desconhecido para o grande público, ele afirma não temer ser alvo de ataques. "Vingança maior que viver afastado dos meus familiares, amigos de infância... Temendo pela segurança deles? Vingança maior que as páginas de realidade transfigurada, de história reescrita com muitas mentiras e algumas meias verdades? Nesta idade, meninos, o medo não existe."
Paulo Tadeu, editor da Matrix, que publicou sua autobiografia, afirma que Cabo Anselmo foi o único não beneficiado pela Lei da Anistia, de 1979. "Todos os envolvidos naquela guerra —e estão lá para matar ou morrer—, militares que patrocinaram o golpe militar e as torturas e guerrilheiros da esquerda, tiveram chance de reconstruir a vida. Menos o Cabo."
A mesma Lei da Anistia impede que Cabo Anselmo seja julgado por colaborar com os órgãos de repressão da ditadura militar.
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