Registro de armas pelo sistema do Exército brasileiro quadruplica em dois anos
O número de armas registradas pelo Exército no Brasil disparou desde o ano passado. A média de armas registradas entre 2016 e 2017 quase quadruplicou em comparação aos dois anos anteriores, saltando de 16 registros diários em 2014 para 60 este ano.
No Brasil, existem dois sistemas de registro de armas: o Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), gerenciado pelo Exército, e o Sinarm (Sistema Nacional de Armas), da PF (Polícia Federal). O Sigma é exclusivo para registro de armas para militares e, no caso de civis, para caçadores, atiradores e colecionadores, os chamados CAC (que representam 90% do total da demanda).
Cada uma das modalidades tem tópicos específicos, mas em nenhum deles é permitido registro de arma para defesa pessoal --o que é restrito ao sistema controlado pela PF.
Na PF, existem duas modalidades: o porte (que é o direito de transitar com a arma e só é concedido em casos devidamente justificados e autorizados) e a posse (que é o direito de ter uma arma em casa).
O Exército afirma que "não há estudos que apontem as causas do aumento de solicitações". Entretanto, para Isabel Figueiredo, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, advogada e ex-diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública, o crescimento de registros no Exército chama muito a atenção e aponta para um indício de desvio de finalidade de um dos sistemas. Ou seja, a pessoa se registraria no cadastro do Exército para, com ele, ter direito a possuir a arma em casa. Entretanto, ela vê o risco de a pessoa sair de casa com a arma, tendo-a como instrumento de defesa pessoal, o que seria ilegal.
A reportagem do UOL solicitou por duas vezes à PF, nos dias 3 e 4, o número de armas registradas no Sinarm nos últimos anos, mas a instituição não respondeu.
"Você pode praticar tiro com sua própria arma"
Apesar de não ter essa finalidade, na internet não é difícil achar empresas e organizações que orientam e até atuam como despachantes para interessados em ter uma arma para defesa pelo registro do Exército. Há até quem indique a possibilidade de "porte" para quem se registrar como atirador.
"Assim, minha escolha e indicação [entre os dois sistemas], para aquele que quer se proteger e ter uma arma em casa, é o Certificado de Registro de Atirador, pelos seguintes motivos: É um direito, não uma concessão de alguma autoridade. Você pode praticar tiro com sua própria arma. Você pode se locomover minimamente com a arma, por meio da guia de tráfego. Você pode ter um número maior de armas", diz uma página, que se apresenta como "empresa de assessora e consultoria para pessoas que buscam ter uma arma própria".
Minha escolha e indicação é o Certificado de Registro de Atirador: é um direito, não uma concessão de alguma autoridade. Você pode ter um número maior de armas
Orientação de página que se apresenta como "empresa de assessora e consultoria para pessoas que buscam ter uma arma própria"
O UOL solicitou uma entrevista com o responsável do site no contato indicado, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.
Outras páginas oferecem o serviço de despachantes para quem se interessa em ter uma arma. Há lista de profissionais em praticamente todos os grandes municípios do país. Em muitos fóruns de debates é comum ler perguntas de pessoas interessadas em ter armas em casa, mas que querem informações de como se registrar pelo Sigma. Há respostas de pessoas que conseguiram e profissionais que se dispõem a ajudar.
A reportagem ligou para um dos despachantes indicados e perguntou sobre a possibilidade de obter uma arma para proteção pessoal, mas pelo sistema do Exército. "É um pouco mais caro, demora, mas pode também", diz o homem. "Você se cadastra como atirador, mas antes vai ingressar em um clube de tiro... Você poderá praticar [tiro], e para muita gente é melhor [que o sistema da PF] por isso", explica, afirmando ter clubes para indicar filiação. O serviço, segundo ele, custa em torno de R$ 250.
"Estratégia para ter acesso mais fácil a arma"
Para Isabel Figueiredo, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a prática sugerida nos sites são na verdade uma burla à lei que estabelece critérios aos registros. "Eles mostram os dois sistemas e sugerem qual escolher como se isso fosse uma escolha. Não é assim! Tem regras! A questão não é de onde é mais fácil conseguir, a questão é o que tem de ficar onde. Quando começa a ter essa discussão, começa a mostrar que tem uma certa enganação", diz.
Figueiredo afirma que, no pedido à PF para conseguir registrar uma arma, é necessário que a autorização seja dada por um delegado --e isso levou, por exemplo, a críticas dos diferentes padrões de autorização pelas superintendências nos Estados. Isso poderia tornar mais difícil o pedido de posse e porte de arma.
O que me parece é que esses sites e fóruns acabam mapeando o fluxo de registro, percebem que um deles é mais fácil, mais barato, seja o que for. A ideia da escolha é contrária ao que preconizam os sistemas
Isabel Figueiredo, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Para ela, isso só ocorre porque a fiscalização nesse setor é falha. "É algo que, se tivéssemos uma política mais séria nessa área, alguém do governo iria investigar para ver porque esse aumento [pelo Sigma] acontece. A suspeita acaba sendo que as pessoas usam a dualidade como uma estratégia para ter mas acesso a arma", afirma.
Como uma solução, ela defende a unificação de registros como uma forma de pôr fim a isso. "Se fosse um sistema único, com regra clara, em todas as unidades da federação, acaba sendo uma decisão mais política do delegado."
"As pessoas se cadastram no Sigma porque querem atirar"
Para Lucas Silveira, presidente do Instituto Defesa e instrutor-chefe da Academia Brasileira de Armas, a legislação para se registrar uma arma não é mais simples no Exército do que na PF. Ao contrário, ele vê mais burocracia. "Para ser atirador, por exemplo, tem que estar filiado a um clube de tiro. Para comprar uma arma, tem que primeiro ter o certificado de registro, depois ter autorização para depois comprar", diz, citando que --como o instituto é defensor do armamento-- o aumento nos registros do Exército é algo "positivo".
Silveira defende a liberdade do cidadão em ter uma arma e diz acreditar que um dos motivos para a alta do Sigma está relacionado às possíveis negativas da PF e às diferenças das possibilidades entre os registros.
"No Exército você se cadastra como atirador. O Sinarm não parece ter compromisso com as armas que vende, porque elas são registradas, mas não se permite que se use. Muitas pessoas acabam se cadastrando no Sigma porque querem atirar, e com as armas no Sinarm não conseguem. É absurdo, e acho que o motivo acaba sendo esse", diz.
Muitas pessoas acabam se cadastrando no Sigma porque querem atirar, e com as armas no Sinarm não conseguem. É absurdo
Lucas Silveira, presidente do Instituto Defesa e instrutor-chefe da Academia Brasileira de Armas
Assim como a integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ele defende que o país tenha apenas um sistema. "O correto seria haver uma gestão única das armas. Não há por que termos dois órgãos", diz.
Exército não sabe razão de aumento
Questionado sobre a razão do aumento abrupto de registros, e indagado sobre se seria indício de que o cadastro seria burlado por pessoas que querem ter arma pessoal, o Exército afirmou que "não há estudos que aponte as causas do aumento de solicitações".
Entretanto, o Exército esclareceu que a lei oferece a qualquer cidadão o direito de ter o registro, desde que siga as normas. "Qualquer cidadão pode requerer, junto ao Exército Brasileiro, o Certificado de Registro (CR) para CAC, para tanto deve atender às condições impostas na seguinte legislação. Cumprido todos os requisitos, terá o direito à concessão do CR e poderá exercer a atividade de CAC", informou.
Entre as normas previstas para conseguir o registro estão a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais e não responder a inquérito policial ou a processo criminal. Além disso, é preciso um atestado de aptidão psicológica.
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