Topo

Alesp aprova isenção de taxa de revalidação do diploma a refugiado, mas burocracia ainda é barreira

O engenheiro mecânico sírio Talal A-Tiwani, 44, tenta desde 2013 revalidar o diploma - Arquivo pessoal
O engenheiro mecânico sírio Talal A-Tiwani, 44, tenta desde 2013 revalidar o diploma Imagem: Arquivo pessoal

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

30/12/2017 04h00

Em São Paulo desde 2013, o sírio Talal  A-Tiwani, 44, é uma das mais de 4,5 milhões de pessoas que, de acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), precisaram deixar o país por conta do conflito na Síria, que se arrasta desde 2011. Em solo brasileiro, no entanto, Talal ainda não conseguiu fazer valer o diploma de engenheiro mecânico pelos anos de estudo na Universidade de Damasco: além de uma relação de documentos exigidos por universidades públicas brasileiras em casos como o dele, a taxa de revalidação do diploma estrangeiro nem sempre é viável a quem chegou nas condições de refugiado – ela varia de R$ 6 mil a R$ 20 mil, dependendo da instituição.

Casos como o de Talal estão no cerne de um projeto de lei aprovado esta semana, na última sessão do ano na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo). Ele isenta refugiados dessa taxa tanto para os diplomas de graduação quanto aos de pós-graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado no Estado.

Como é específico a refugiados, e não envolve migrantes, o texto do projeto restringe o benefício a quem teve a condição assim reconhecida pelo Brasil e que se encontra em território nacional “devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas” em seu país de origem.

O benefício também se aplica a quem “não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país”, nem retornar a ele, em função das circunstâncias descritas, e que “devido a grave e generalizada violação de direitos humanos é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.”

O projeto, que tramitou na Casa por mais de um ano, foi aprovado por unanimidade e encaminhado à análise do governador Geraldo Alckmin (PSDB), que pode sancioná-lo ou vetá-lo.

Trabalhadores qualificados

De acordo com o autor da matéria, o deputado Carlos Bezerra (PSDB), a proposta surgiu de um trabalho que ele classificou como “escuta qualificada” --não apenas de refugiados, mas também de profissionais que lidam com a acolhida deles. Bezerra é presidente da comissão de Direitos Humanos da Alesp, o que o aproxima de temas como esse.

“Nesse trabalho de campo, o principal problema relatado para a integração dos refugiados no Brasil, e em São Paulo isso não é diferente, esteve na revalidação dos diplomas. É muita gente qualificada que poderia estar contribuindo de maneira efetiva com o país, mas essas taxas inviabilizam a possibilidade de recomeço tanto da pessoa como da família”, explicou o parlamentar.

“Segundo as escutas que fizemos, os custos ficam entre R$ 6 mil e R$ 20 mil; quanto mais graduado, mais custoso o processo. E é importante ter em vista que essas pessoas não vieram para cá por escolha, mas como única opção que tiveram para preservar a própria vida e a da família --condições de vulnerabilidade muito mais sensíveis que a de brasileiros que optaram por fazer a graduação fora do Brasil”, comparou.

Uma das justificativas do projeto, além do aspecto humanitário, é de natureza econômica: “Há estudos internacionais atestando que trabalhadores estrangeiros respondem por 9,4% (ou US$ 6,7 trilhões) do PIB mundial. Se tivessem optado por permanecer em seus países de origem, esse número seria cerca de 4%, ou US$ 3 trilhões a menos”, mencionou Bezerra.

Atualmente, a estimativa é a de que os refugiados representem cerca de 10% dos 247 milhões de imigrantes em todo o mundo. Conforme o Conare (Comitê Nacional Para Refugiados), até junho deste ano foram protocolados 10.500 pedidos de refúgio no Brasil -- até o final de 2016, o país reconheceu um total de 9.552 refugiados de 82 nacionalidades.

Segundo o tucano, a situação que hoje chama mais atenção é a de refugiados venezuelanos que deixaram o país ante a crise econômica e política em meio à gestão de Nicolás Maduro. “Até o dia 1º de novembro passado foram recebidas pelo país 15.643 solicitações de refúgio de venezuelanos. A maioria são jovens e universitários. O Brasil é signatário dos principais tratados internacionais de direitos humanos, além de ser parte da Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados”, afirmou.

Em nota, o Acnur (Agência da ONU para Refugiados) celebrou a aprovação do projeto – visto como “uma ampliação dos direitos das pessoas refugiadas no Brasil, na medida em que facilita o exercício de seu pleno desenvolvimento, possibilitando que seus conhecimentos sejam reconhecidos e consequentemente postos em prática”. “Esta é uma medida de extrema importância para que possamos incorporar os diversos saberes das pessoas refugiadas à sociedade brasileira, além de promover ao mesmo tempo sua autossuficiência”, avaliou a chefe do escritório do Acnur em São Paulo, Maria Beatriz Nogueira.

Universidade exigiu 17 documentos

Para o engenheiro mecânico Talal, a taxa de revalidação “é apenas parte dos problemas”.

“A burocracia em si é o maior problema, não apenas a taxa, em si. Tentei revalidar meu diploma no Rio, no Paraná e em São Paulo, mas a quantidade de documentos que se exige é impossível a um refugiado: como eu vou apresentar meu histórico escolar, por exemplo, se a Universidade de Damasco, onde estudei, fechou, com a guerra? Até provei isso, mas cheguei a ser cobrado por 17 outros documentos que não tenho condições de apresentar, na minha condição”, afirmou.

Outra dificuldade de Talal foi a prova exigida em algumas instituições para atestar domínio da língua portuguesa – condição necessária para que refugiados reconhecidos pelo Conare requeiram a medida. “Fiz provas de conhecimentos na minha área e de conhecimentos em português –atingi 70%, mas me exigiram 80%. É alto demais”, criticou.

Hoje, além da certidão de reconhecimento da condição de refugiado pelo Conare, o profissional precisa apresentar o RNE (Registro Nacional de Estrangeiros), CPF, passaporte válido e diploma ou certificado de graduação, histórico escolar, conteúdo programático e, quando a universidade entender necessário, uma prova que comprove domínio básico da língua e conhecimentos na área.

“Quero e preciso validar meu diploma para conseguir dinheiro, expandir meu negócio e dar o máximo que eu puder de condições para minha família, que está comigo [a mulher e três filhos]. Já trabalhei em um box na feirinha da madrugada, no Brás, e como engenheiro mecânico por dez meses, mas recebendo R$ 2 mil –imagino que isso esteja muito aquém do que se paga na minha área, mas ou era isso, ou nada. Não foi fácil”, desabafou.

Para o engenheiro e comerciante, a maior dificuldade no país foi a língua. “É muito difícil de aprender, mas estou fazendo aulas e sei que isso é necessário”, afirma. E o que o surpreendeu positivamente? “As pessoas. Elas gostam de ajudar, e por isso eu sou muito grato.”

A jornalista Claudine Kumb, 39, tenta há um ano e meio revalidar o diploma obtido na República Democrática do Congo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A jornalista Claudine Kumb, 39, tenta há um ano e meio revalidar o diploma obtido na República Democrática do Congo
Imagem: Arquivo pessoal

“Tive que sair do meu país para salvar minha vida"

No Brasil há cerca de três anos, a jornalista Claudine  Shindany  Kumb, 39, também se queixou da burocracia para revalidar o diploma obtido na República Democrática do Congo, seu país natal. O país enfrenta há pelo menos um ano um clima de instabilidade política que, segundo a ONU, provocou uma nova onda de refugiados.

Em São Paulo, Claudine vive com o marido, que está estudando, e um filho pequeno. Produz programas em uma rádio voltada ao público migrante e tenta há um ano e meio revalidar o diploma de jornalista.

“Faço alguns bicos de roda de conversa com mulheres imigrantes, além de palestras; passei em um edital da Secretaria Municipal de Cultura com um projeto que fiz para ensinar sobre a África por meio de brinquedos, brincadeiras, contos, canções e cheguei a levar isso para uma escola municipal, mas o programa foi cancelado pelo novo governo”, disse.

“Hoje eu procuro quem possa me ajudar com as dificuldades para conseguir a revalidação do meu diploma, já que meus documentos estavam traduzidos e legalizados, mas a demora é muito grande. A burocracia do Brasil é maior em todos sentidos, não só com essa taxa de revalidação”, avaliou.

O que espera em 2018? “Trabalho”, ela diz. “Tive que sair do meu país para salvar minha vida, pois lá há muita perseguição. Posso atuar na área administrativa, além de trabalhar como jornalista – mas só o que espero, mesmo, é um trabalho para me sustentar. Não é fácil viver em um país longe de casa e sem parentes aqui”, desabafou.

Avanço na lei

Para o coordenador do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante de São Paulo e ex-integrante da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo durante o governo de Fernando Haddad (PT), Paulo Iles, o projeto de lei de Bezerra vem em um contexto de avanços na questão migratória, uma vez que ajudaria a desburocratizar a revalidação do diploma e a promover esse tipo de política pública de viés humanitário.

“Há imigrantes que possuem vários diplomas e não conseguem exercer a profissão, o que tira deles a autonomia. Certamente essa isenção incentivará que muitos mais deem entrada nesses pedidos”, disse.

Por outro lado, Iles observou que a legislação é específica a refugiados reconhecidos pelo Estado brasileiro.

“São menos de 15 mil refugiados assim reconhecidos hoje pelo governo de um total de cerca de 50 mil solicitantes de refúgio. Esse reconhecimento é um processo moroso e que pode levar até três anos".

"Além disso, migrantes não se encaixariam nessa situação de refugiados – caso, por exemplo, de bolivianos e haitiano – e temos hoje mais de 600 mil pessoas nessa situação em São Paulo, das quais em torno de 400 mil estão regularizadas”, afirmou.

“O projeto chama atenção para um assunto que está em pauta, mas a crise do refugiado no mundo mas não é a mesma no Brasil. Falta ainda, aqui, um olhar mais global que abranja também os migrantes”, analisou.

“Estamos tendo avanços com a questão dos refugiados, e acredito que podemos avançar na mesma direção para os migrantes – isso é uma garantia de direito que vai se dando de forma crescente e progressiva, sem dúvida”, disse o deputado autor do projeto de lei.