Registro de armas cresceu mais de dez vezes desde Estatuto do Desarmamento
O número de registros de armas de fogo de pessoas físicas disparou nos últimos anos no Brasil. Desde 2004, primeiro ano do Estatuto do Desarmamento, os números já vinham mostrando um aumento praticamente ano após ano. Os dados são da PF (Polícia Federal) e foram repassados ao UOL após pedido feito via Lei de Acesso à Informação.
O total de armas registradas saltou de 3.055, em 2004, para 33.031 no ano passado --981% a mais. Os números mostram ainda que o número de registros de armas cresceu constantemente até 2015, quando atingiu o pico desde o estatuto: 36.807 --1.104% a mais em relação ao primeiro ano de desarmamento. Nos últimos três anos, foram registradas mais de 90 novas armas por dia em média.
Até a promulgação do estatuto, no dia 22 de dezembro de 2003, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o registro de armas era feito pelos estados. A partir de 2004, o sistema de registro passou a ser controlado exclusivamente pela PF, a quem cabe autorizar a posse e porte de armas no país para autodefesa. Por isso, os dados nacionais antes desse ano são considerados pouco confiáveis.
No país há também um outro tipo de registro de armas específico para caçadores, atiradores e colecionadores --e que também quadruplicou em apenas dois anos, como revelou o UOL no ano passado.
Armado para proteção
Foi após passar por um assalto a mão armada junto com a namorada que o administrador de empresas Raphael Ferreira Carnaúba, 33, adquiriu uma pistola 380 em novembro de 2014. O administrador mora em Maceió e, nesse ano, Alagoas era o estado mais violento do Brasil, com taxa de mortalidade de 62,8 homicídios a cada 100 mil habitantes (a média no Brasil foi de 29,8 em 2014).
"Adquiri para defesa pessoal, da minha casa e de minha família", conta, lembrando que para ter a arma em casa fez testes e um curso prático de manuseio --ambos exigidos pela PF. "Acabei percebendo a necessidade de um maior aprimoramento quanto ao uso do armamento e hoje sou filiado ao Clube Alagoano de Tiro Olímpico para um maior aprendizado de como manusear a arma na hora da necessidade --que se Deus permitir não acontecerá", relata.
Carnaúba diz que está fazendo testes para ter também o porte da arma (que é o direito de andar na rua com ela). "O cidadão, desde que bem treinado e com bons antecedentes, deve ter o direito de adquirir armas de fogo para sua legítima defesa."
A favor do desarmamento
O armamento civil sempre foi controverso e alvo de argumentos favoráveis e contrários de estudiosos do tema. Entre os candidatos à Presidência, o tema também está longe de uma unanimidade: há quem defenda o desarmamento completo, há quem defenda maior facilidade na posse e porte de armas aos cidadãos.
O sociólogo e professor da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, Julio Jacobo Waiselfisz, avalia que flexibilizar o estatuto seria um erro, já que o cumprimento efetivo dele nunca foi implementado.
"O estatuto previu uma série de medidas de controle das armas e da munição --que deveria ter códigos--, mas nada disso praticamente se cumpriu. Não há um controle de contrabandos de armas de fogo. Diante dessa falência do sistema de segurança é natural as pessoas quererem ter armas para se defender, isso acontece em toda parte do mundo em que o Estado não é eficaz", afirma.
Por mais de 30 anos, ele pesquisou dados e foi responsável pela produção anual do Mapa da Violência. Ele assegura que a ideia de liberar mais a venda de armas apenas aumentaria a violência. "Com mais armas há mais violência homicida, há um maior número de acidentes. Aqui não se precisa promulgar novas leis; nós temos leis boas para tudo, que são até referência internacional, mas a aplicação é falha. E a lei pela lei é morta", pontua.
Para o pesquisador e coordenador do Obvio (Observatório de Violência Letal Intencional), Ivenio Hermes, o debate sobre a defesa do armamento civil é um "engodo do marketing armamentista." Para ele, o aumento na busca pelas armas não teve qualquer impacto positivo nos dados de homicídios.
"Há um contrassenso maior no discurso de quanto mais armas menos violência. De 2004 para cara houve esse aumento de registros. Isso reduziu a violência? Não é o que os dados da violência dizem. Armar o cidadão é apenas uma desculpa para investir menos no que importa", defende.
Segundo dados do Atlas da Violência do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o número de mortes por arma de fogo saltou de 34.187, em 2004, para 44.475 em 2016 (último ano com dados disponíveis).
"O que se percebe nesse argumento é a redução da responsabilidade do Estado em promover e prover segurança pública, ordem e paz social. Nesse intuito, vale tudo, até dizer que as armas estarão nas mãos de todo cidadão de bem, quando se sabe claramente que a maioria da população brasileira não terá acesso ao armamento devido às suas baixas condições de renda, que nunca permitirão o acesso", diz.
Contra o desarmamento
O consultor jurídico e professor de direito administrativo da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, Adilson Dallari, defende o fim do desarmamento e afirma que a alta na procura por armas de fogo pela população tem duplo significado.
"Primeiro, fica muito claro o fracasso da segurança pública e o sentimento de insegurança das pessoas comuns, preocupadas com a defesa do domicílio e da família. Segundo, é altamente positiva a preocupação em ter uma arma legal, devidamente registrada. Nós defendemos o direito à legítima defesa, com os meios necessários para isso", diz o professor, que não defende o "armamento geral e irrestrito", mas diz que gostaria de ver o estatuto alterado.
"Quanto à posse de arma em domicílio, é preciso diminuir a burocracia e os custos. Quanto ao porte de arma, é preciso acabar com a subjetividade, que ofende o princípio constitucional da igualdade, propiciando a corrupção ou, no mínimo, o tráfico de influência. Em síntese, queremos regras claras e objetivas, e custos razoáveis", alega.
O jurista e presidente da ONG Movimento Viva Brasil, Bene Barbosa, diz que o aumento nas armas registradas é uma "resposta obvia" à insegurança. "As pessoas começam a perceber claramente que o estado não é capaz de proteger e buscam formas alternativas", avalia, criticando o Estatuto do Desarmamento.
"Quando a legislação foi aprovada, em 2003, tinha efeitos desconhecidos. Embora a gente sempre tenha afirmado que não surtiria efeito, muitas pessoas acreditavam --tanto que 600 mil pessoas entregaram suas armas. Mas, hoje, elas perceberam que a lei não foi capaz de reduzir a criminalidade e de coibir que os criminosos tivessem acesso às armas", alega.
O professor ainda diz que, apesar da alta, o número de armas registradas ainda é pequeno. "Se a gente levar em conta que temos um país com mais de 200 milhões [de habitantes], o número é irrisório. Sem contar que o número de pedidos feitos é muito maior. Eles não informam o número, dizem que não conseguem ter, mas creio que de 70 a 80% dos pedidos são negados", avalia.
A reportagem do UOL pediu, na última segunda e terça-feira (24 e 25), uma entrevista ou posicionamento da PF sobre os dados apresentados, sobre o aumento de registro de armas, mas o órgão não se pronunciou.
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