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Inter abre ginásio com apoio gremista para moradores de rua fugirem do frio

Luciano Nagel

Colaboração para o UOL, em Porto Alegre

07/07/2019 04h00

Gratidão. Este é o sentimento de Fabrício Leal, de 40 anos, morador em situação de rua em uma das capitais mais frias do Brasil, Porto Alegre. No final da tarde de sexta-feira (5), sob uma temperatura de 6º C com sensação térmica chegando na casa de 0º C, o ex-estudante de Comunicação Social da PUCRS aguardava na enorme fila para entrar no estádio Gigantinho, do Sport Club Internacional, onde passaria a noite.

A direção do Inter anunciou na quinta-feira (4) que iria abrir os portões de seu ginásio no dia seguinte para pessoas em situação de rua. Quem conseguisse uma vaga teria direito a uma noite de sono com colchão, cobertor e agasalhos, além de um sopão produzido pelo grupo de voluntários Cozinheiros do Bem e de um café da manhã. Torcedores do rival Grêmio ajudaram nas doações e como voluntários.

"Eu sou gremista doente, muito louco pelo Grêmio, mas principalmente hoje estou vendo a carga de solidariedade dos colorados e gremistas. É simplesmente maravilhoso, não tem palavras para isso. Aqui dentro não existe rivalidade, só rivalidade do bem para ver quem vai doar mais", disse ao UOL o rapaz, emocionado.

"A minha inclusão na rua foi bem complicada, foi um baque, de uma hora pra outra, e quando vi já estava como um morador da rua. Este é o primeiro inverno que estou enfrentado aqui em Porto Alegre", afirmou ele, que disse ter entrado no mundo das drogas após duas perdas na família e uma desilusão amorosa.

5.jul.2019 - Moradores de rua fazem fila para receber abrigo no ginásio Gigantinho, do Inter, em Porto Alegre - Luciano Nagel/UOL - Luciano Nagel/UOL
5.jul.2019 - Moradores de rua fazem fila para receber abrigo no ginásio Gigantinho
Imagem: Luciano Nagel/UOL

Inspiração em clube argentino

A iniciativa do Inter foi inspirada no clube argentino River Plate, que desenvolveu ação parecida nos últimos dias em Buenos Aires, onde a temperatura no início da semana chegou a 4º C.

"Ficamos sabendo que o tempo iria mudar bastante nos últimos dias e temos este espaço ocioso aqui. O clube tradicionalmente trabalha com a inclusão social e estamos participando junto com a prefeitura e algumas ONGs ajudando um pouco estes moradores de rua. Nós vamos usar este espaço ocioso para abrigar esta gente", afirmou o vice-presidente do Inter, João Patrício C. Herrmann.

O portoalegrense Fabrício Leal disse à reportagem que vive perambulando nas ruas há pouco mais de um ano, desde que se separou e suas filhas foram morar com a ex-mulher. Depois, vieram a depressão, a perda de emprego e a entrada no vício de cocaína.

"Estou sempre na busca de algum trabalho, mas é muito difícil um morador de rua conseguir um emprego, mesmo que se tenha carteira assinada, porque a sociedade nos vê como pessoas que não deram certo na vida, no trabalho. Infelizmente há um preconceito muito grande", lamentou ele, que diz estar há dois meses sem usar drogas.

Nos finais de semana, Fabrício que já trabalhou como motorista e garçom, costuma buscar comida durante ofertas do grupo de voluntários Cozinheiros do Bem, que atua em Porto Alegre. O projeto existe há 4 anos e distribui alimentos para pessoas carentes em diversos pontos da capital.

Carrinho de mercado como companheiro inseparável

Enquanto Fabrício concedia a entrevista, outro homem em situação de rua observava atentamente a conversa na fila de espera para a abertura dos portões. A história de Adimilson Ferreira Moraes, de 33 anos é similar à de Fabrício. Nasceu em Porto Alegre, é torcedor fanático do Grêmio e diz ter ido morar nas ruas após uma separação.

"Estou na rua há pelo menos 5 anos. Sinceramente eu não esperava por isso, uma ação bonita como essa do Internacional. Eu estava lá na avenida Farrapos, longe pra caramba do Gigantinho, quando fiquei sabendo da notícia que iriam abrigar a gente e por isso vim correndo para cá", disse o rapaz, que carregava seu carrinho de supermercado com um cobertor e garrafas pet que coletou das ruas para receber uns trocados na reciclagem.

Adimilson afirmou que costuma dormir sempre no Parcão, parque Moinhos de Vento situado na zona central da capital. "Sempre durmo lá junto com o meu carrinho ao lado, caso contrário me roubam. Se não me deixarem entrar no ginásio com ele, ficarei do lado de fora", adiantou. No decorrer da reportagem, ele conseguiu entrar no Gigantinho com o seu "companheiro", que foi devidamente identificado com um adesivo por uma voluntária que realizava o registro das pessoas.

5.jul.2019 - Carlos Oliveira buscou abrigo no ginásio Gigantinho, em Porto Alegre, e esperava poder entrar com seu carrinho, onde carrega garrafas de plástico e cobertores - Luciano Nagel/UOL - Luciano Nagel/UOL
Carlos Oliveira buscou abrigo no Gigantinho e pôde entrar com seu carrinho
Imagem: Luciano Nagel/UOL

Um dos últimos da fila, onde mais de 50 pessoas naquele momento ainda aguardavam a entrada no ginásio, Carlos Oliveira, 50 também quis contar sua história. Sob o frio de 6º C e um vento cortante vindo do lago Guaíba, o homem também carregava consigo um carrinho de supermercado com alguns cobertores e uma sacola plástica com latas e garrafas pet.

"Faz uns dois anos que vivo na rua. Parei aqui por causa do álcool, mas estou fazendo tratamento para largar o álcool, entendeu? (...) Se eu não puder entrar com meu carrinho eu vou embora. Isso aqui é para eu trabalhar e minhas cobertas. De dia eu carrego as cobertas e encho de plástico isso aqui para sobreviver, comprar comida, essas coisas. Eu cato plástico, garrafa, latinha. Tiro as vezes R$ 20 por dia, mas tem dia que não se tira nada também, que o lixo está ruim. Espero que dure mais tempo (a estadia). As pessoas precisam de lugar para dormir", afirmou o portoalegrense.

Lanche, jantar, café e vacina

Ao ingressar no Gigantinho, a população em situação de rua devidamente cadastrada na Fundação de Assistência Social e Cidadania de Porto Alegre (FASC) recebeu um lanche e teve como jantar um sopão. Foram servidos cerca de 2 mil litros de sopa (com legumes, verduras e galinha, acompanhado de pão). Além do jantar, as torcidas organizadas do Inter ofereceram um café da manhã para os hóspedes provisórios.

O Gigantinho permaneceu aberto das 19h às 21h de sexta para receber os acolhidos. Nesta primeira ação, a expectativa era atender 300 pessoas - praticamente o dobro do acolhimento oferecido hoje na Capital, que tem 355 vagas nos albergues. Os animais de estimação dos moradores de rua também puderam ingressar no ginásio, ficando apenas isolados em uma parte selecionada pelos organizadores para evitar possíveis brigas.

5.jul.2019 - Colchões espalhados no Gigantinho, em Porto Alegre. O clube Internacional abriu seu ginásio para receber moradores de rua e tirá-los do frio - Luciano Nagel/UOL - Luciano Nagel/UOL
Colchões espalhados no Gigantinho; moradores também receberam cobertores e agasalhos
Imagem: Luciano Nagel/UOL

A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Porto Alegre disponibilizou uma unidade móvel com médicos psiquiatras, psicólogos e enfermeiros para atender a população carente. Durante a ação noturna, foram aplicadas doses da vacina contra a gripe A, além de testes de HIV, Sífilis, Hepatites e Tuberculose.

Márcia Goncalves Machado, de 34 anos, viveu nas ruas de Porto Alegre por mais de 2 anos e participou da ação no Gigantinho como voluntária. "Estou muito feliz por estar aqui, e desta vez não como uma moradora de rua, e sim como palestrante. Vou falar para estas pessoas, contar minha história e mostrar que é possível sair adiante. A rua é apenas uma passagem. Eu sou a prova disso", disse orgulhosa a ex-moradora de rua.

Durante toda a sexta-feira e sábado, chegaram inúmeras doações de roupas, cobertores e alimentos não perecíveis para ajudar os abrigados. Às 8h da manhã deste sábado, os desabrigados tiveram que deixar o local.

Abrigos em Porto Alegre

Segundo a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) e entidades ligadas a assistência social, cerca de 4 mil pessoas vivem em situação de rua em Porto Alegre.

Na capital gaúcha, existem centros de acolhida, que são espaços com alojamento provisório que oferecem alimentação, banho, guarda de pertences, dormitório e café da manhã. Também há centros de acolhidas específicos para migrantes.

Para os abrigos municipais que acolhem público em geral, é necessário o encaminhamento do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) ou do Centro de Referência Especializado em Assistência (CREAS).

Confira a lista de abrigos em Porto Alegre:

Casa de Convivência:

  • Rua João Alfredo, 782, Bairro Cidade Baixa
  • De segunda a sexta, das 8h30 às 12h e das 13h30 às 18h

Albergue Municipal

  • Oferece pernoite, jantar, café da manhã, banho e roupas limpas a moradores de rua de ambos os sexos
  • Rua Comendador Azevedo, 215, Bairro Floresta
  • Diariamente, das 19h às 7h. 150 vagas no inverno e 120 nas outras épocas do ano

Abrigo Municipal Marlene

  • Além do acolhimento e abrigo para adultos, auxilia os abrigados em sua reorganização pessoal e social
  • Avenida Getúlio Vargas, 40, Bairro Menino Deus
  • 110 vagas no inverno e 100 nas outras épocas do ano

Abrigo Municipal Bom Jesus

  • Rua São Domingos, 165, Bairro Bom Jesus
  • 88 vagas no inverno e 78 nas outras épocas do ano