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O que acontece em um julgamento de homicídio quando não há corpo da vítima?

Em 2014, maquinário pesado escavou bairro de Santa Clara, em Vespasiano, região metropolitana de Belo Horizonte, em busca do corpo de Eliza Samudio - Rayder Bragon/UOL
Em 2014, maquinário pesado escavou bairro de Santa Clara, em Vespasiano, região metropolitana de Belo Horizonte, em busca do corpo de Eliza Samudio Imagem: Rayder Bragon/UOL

Lucas Borges Teixeira

Colaboração para o UOL, em São Paulo

06/09/2019 04h00Atualizada em 06/09/2019 18h31

Há uma lógica entre livros policiais e filmes sobre crimes de que, se não existe um corpo, não há como se provar um crime. Isso gera um debate no meio jurídico e alimenta a imaginação da população quando um caso de desaparecimento ganha as manchetes dos jornais, mas não tem respaldo no Brasil.

A legislação prevê a possibilidade de condenação por homicídio quando não há cadáver, desde que apoiada em prova testemunhal e outros indícios. O assunto também já foi pacificado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em diferentes decisões e tem uso recorrente no Brasil --como nos casos do sumiço de Eliza Samudio em 2010, pelo qual o goleiro Bruno Fernandes foi preso, e de Maria Denise Lafetá, no final dos anos 1980.

De acordo com o Código de Processo Penal (CPP), se o exame de corpo de delito não puder ser realizado por causa do desaparecimento dos vestígios (no caso de assassinato, o cadáver), ele pode ser substituído por uma "prova testemunhal".

"São as testemunhas ouvidas no julgamento. Com relatos e outros indícios, é possível seguir adiante com o caso, mesmo não tendo um corpo. A legislação admite essa possibilidade", explica o advogado criminalista Leonardo Pantaleão.

A estratégia foi usada pela promotoria no caso do goleiro Bruno Fernandes, condenado a 22 anos de prisão por homicídio triplamente qualificado, sequestro e cárcere privado da ex-modelo Eliza Samudio.

Goleiro Bruno - Renata Caldeira/TJMG - Renata Caldeira/TJMG
Goleiro Bruno, condenado e preso pelo assassinato de Eliza Samudio
Imagem: Renata Caldeira/TJMG

Sérgio Rosa Sales, primo do goleiro, havia confessado ter participado do sequestro de Eliza e afirmou que ela havia sido morta pelo amigo Marcos Aparecido Santos, o Bola, com consentimento do jogador. Ele era considerado uma testemunha-chave para o julgamento dos réus.

Sales, no entanto, foi assassinado com seis tiros em Belo Horizonte em agosto de 2012, três meses antes de o julgamento começar. Ainda assim, outras testemunhas corroboraram a história no tribunal.

Quatro pessoas foram condenadas no processo: o amigo Luiz Henrique Ferreira Romão, conhecido como Macarrão, pegou 15 anos de prisão por homicídio qualificado; Fernanda Gomes de Castro, ex-namorada do goleiro, foi condenada a cinco anos de prisão por participação no crime; e o ex-PM Bola foi sentenciado a 22 anos de prisão por homicídio triplamente qualificado. Bruno pegou 22 anos por homicídio triplamente qualificado, sequestro e cárcere privado.

Segundo Pantaleão, é comum usar "outros meios de prova" quando não se encontra um corpo, mas há indícios de assassinato. "No caso do Bruno, havia uma série deles: a polícia encontrou sangue no carro, além de relatos dos próprios parentes dele terem sido muito convincentes", afirma o advogado.

Maurício Paes Manso, professor de Direito de Processo Penal da Unisal (Centro Universitário Salesiano de São Paulo), também cita o Artigo 239 no CPP, que trata de indícios, para embasar estes casos.

"Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias", diz o artigo.

"Todo crime deixa vestígio. Se eles desaparecem sem haver uma perícia, é preciso trazer a materialidade [da prova] por outros elementos. Aí entram prova testemunhal, triangulação do telefone da vítima, entre outros", explica Manso. "Mas tem de lembrar que não são provas, são indícios."

Versões contraditórias e abandono da filha

Indícios e testemunhos foram usados como base em outro caso famoso de desaparecimento no Brasil. Maria Denise Lafetá desapareceu em Uberlândia (MG) em 1988. A suspeita recaiu sobre o marido, Daci Antonio Porte, mas ele não foi levado a júri popular porque não havia cadáver.

A promotoria, então, reuniu indícios de que ela havia morrido, recorreu e houve um novo julgamento. Ao júri, o promotor argumentou que Lafetá tinha uma filha de seis meses quando desapareceu e que, além da criança, também tinha deixado para trás todos os seus pertences.

Parentes de Denise e do réu também afirmaram que Daci dava informações diferentes e contraditórias sobre o suposto desaparecimento da mulher. Ele acabou condenado a 13 anos de reclusão por homicídio qualificado.

"A comprovação da morte da vítima exige prova direta (perícia do próprio corpo). Essa é a regra. Excepcionalmente, para suprir-lhe a falta, a lei processual admite a prova indireta (testemunhal). Um terceiro meio probatório sozinho, isolado (outros indícios da morte: sangue, cabelo da vítima etc.), a lei não prevê. Mas, junto à prova indireta, pode ser que vários outros indícios sejam encontrados (e provados)", explica Rogério Tadeu Romano, procurador-geral da República aposentado, em artigo publicado em 2017. "Esse conjunto probatório indireto mais indiciário pode alcançar o patamar de uma convicção que afasta todo tipo de dúvida. Isso pode gerar condenação."

Alguns desses casos já chegaram ao STF, que teve entendimento semelhante, de possibilidade de condenação por homicídio mesmo sem o cadáver, em diferentes decisões, como os julgamentos de um habeas corpus em 2002 e outro em 2009.

O caso de Dana de Teffé

Ainda que amparados pela legislação e pacificados pelo STF, julgamentos sem o corpo ainda causam polêmica entre os especialistas. Para Manso, estas condenações têm uma "questão perigosa".

"Você encontra casos de condenação apoiados apenas em indícios muito fortes, o que não é adequado, porque é preciso pelo menos uma prova robusta", avalia o advogado. "Por exemplo: prova-se que a vítima foi ameaçada por tal pessoa e que esta foi a última a ser vista com ela. São indícios fortes, mas isso não quer dizer que ela tenha matado. Acredito que tenha de haver uma prova minimamente certa", afirma Manso.

Este foi o entendimento do júri por três vezes em um dos mistérios policiais mais famosos do Brasil nos anos 1960: o desaparecimento da milionária Dana de Teffé. Em 1961, a imigrante da antiga Tchecoslováquia passava por uma separação no Brasil, onde vivia, quando desapareceu durante uma viagem do Rio de Janeiro para São Paulo. Ela estava com seu advogado, Leopoldo Heitor Andrade Mendes, com quem supostamente tinha um caso.

Preso, Mendes contou diferentes histórias, entre elas que Dana havia sido sequestrada por comunistas. Ele foi condenado a 35 anos de prisão por latrocínio, mas recorreu. O TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) entendeu que ele deveria ser julgado por "homicídio qualificado" e anulou a decisão.

Ele foi a júri popular três vezes (1966, 1969 e 1971) e foi absolvido em todos os julgamentos. Embora ele tenha sido a última pessoa a vê-la e tenha contado diferentes versões sobre a viagem, a defesa se apoiou na ausência do corpo.

A promotoria tentou reabrir o processo em 1974, mas não foi autorizada por falta de provas. O crime prescreveu em 1981. O corpo de Dana nunca foi encontrado.

"Não se pode desconsiderar: em Tribunal de Júri, o réu é julgado por pessoas leigas, a própria legislação diz que é para eles julgarem com seu sentimento de justiça. Então, o que conta é linguagem, a forma como cada um trabalha as provas e indícios", argumenta Manso. "O perigo da coisa é que há uma dedução de que a vítima morreu, mas não há um grau completo de certeza."

Já Pantaleão diz acreditar que o dispositivo na lei que permite a condenação mesmo sem o corpo garante que não haja estímulo à impunidade. "Imagina se não houvesse essa possibilidade? Se só se julgasse quando tem cadáver? Neste caso, ao cometer um homicídio, era só esconder muito bem o corpo e você estaria livre", avalia o criminalista. "Se há testemunhas e outros elementos que atestam que houve o crime, o julgamento tem de ser feito. Caso contrário, a impunidade reinaria."

Erro judicial

Há outro caso famoso na história da Justiça brasileira, em que dois irmãos de Araguari (MG), Joaquim e Sebastião Naves, foram presos e condenados pela morte de um agricultor em 1937. Quinze anos depois, em 1952, Benedito Caetano, a suposta vítima, reapareceu vivo na cidade.

O Caso dos Irmãos Naves - Divulgação - Divulgação
"O Caso dos Irmãos Naves" virou documentário por Luís Sérgio Person
Imagem: Divulgação

Benedito contou que fugiu por causa de uma dívida não paga e não sabia do julgamento. Sebastião foi inocentado, mas Joaquim já havia morrido havia quatro anos, em 1948, em decorrência de uma doença grave. O processo ficou conhecido como "O Caso dos Irmãos Naves", virou filme e até hoje usado como um dos principais exemplos de erros judiciais no país, pois se descobriu depois que eles haviam confessado o crime sob tortura.

Em casos como este, em que a vítima de homicídio aparece viva, os especialistas explicam que o réu é posto em liberdade e o Estado tem de pagar uma indenização pelo tempo em que a pessoa ficou injustamente reclusa.

"Com a suposta vítima não acontece nada, porque não é crime você desaparecer. Já com a pessoa injustamente condenada, o Estado tem de arcar com uma indenização pelo erro cometido", afirma Manso.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado no trecho sobre o caso dos Irmãos Naves, Joaquim e Sebastião Naves não foram soltos após a volta de Benedito Caetano porque Joaquim já havia morrido havia quatro anos. A informação foi corrigida.