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Prender demais é fornecer mão de obra barata para PCC, diz Gilmar Mendes

Aiuri Rebello, Eduardo Militão, Flávio Costa e Luís Adorno

Do UOL, em Brasília

04/12/2019 04h00Atualizada em 04/12/2019 17h07

Resumo da notícia

  • Ministro do STF diz que é preciso diminuir a população carcerária
  • Para ele, a ressocialização minaria o poder das facções

O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes entende que o superencarceramento de presos no Brasil alimenta facções criminosas, como o PCC (Primeiro Comando da Capital). "Se nós insistirmos nesse encarceramento sistemático, no quadro atual, em que os presídios estão dominados pelas grandes organizações criminosas, nós estaremos fornecendo mão de obra baratíssima para essa gente", afirmou ele em entrevista ao UOL, em seu gabinete, em Brasília.

Como mostra o documentário "PCC - Primeiro Cartel da Capital", que faz parte do selo MOV.doc, destinado a produções documentais do UOL, a facção praticamente monopolizou o comércio e a exportação da cocaína produzida na Bolívia e transportada até a Europa e a África.

Para Gilmar, o sistema carcerário está "submetido a uma regra de caos", mas a ressocialização é uma solução possível (leia mais abaixo).

Quando presidiu o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), ele promoveu mutirões carcerários para verificar as situações das penitenciárias. "Nós vamos prendendo pessoas, pessoas que eventualmente cometeram pequenos delitos ou até delitos mais graves. Mas nós colocamos essa gente nas mãos das organizações criminosas que dominam os presídios."

Na verdade, nós estamos dando mais massa de manobra. Nós estamos dando mais 'recursos humanos', chamemos, assim, entre aspas, para essas organizações

Gilmar Mendes, ministro do STF

Até quem cumpre punições curtas torna-se útil às facções quando sai da cadeia, na avaliação do ministro do STF. "Muitas vezes eles já sabem que essas pessoas estão cumprindo um período curto de prisão, portanto são cooptados para, depois, cumprirem missões mais destacadas de fora."

Segundo o ministro, a situação mostra "a repressão mal pensada e o crime muito bem organizado". "Por isso, nós temos todo esse quadro e esse tumulto. O [ex-]ministro [da Segurança Pública] Raul Jungmann chamou de nossos presídios são o 'home office do crime'."

O Brasil tinha 726 mil presos em 2017, ano em que gastou R$ 15,8 bilhões para manter o sistema. O país tem a terceira maior população carcerária do planeta.

"É um campeonato que a gente não quer ganhar", afirma Gilmar Mendes. "E no momento em que os Estados Unidos, que têm uma liderança nesse campo, começam a rever essa política de encarceramento sistemático", diz.

Brasil precisa debater droga legalizada

Na avaliação de Gilmar, o país precisa discutir a descriminalização do consumo de drogas. Para isso, seria preciso definir qual a quantidade de produto seria considerada material para consumo próprio ou para comércio.

"Vem a reivindicação que vários movimentos fazem para que se tenha uma definição de qual é a quantidade de droga que pode ser normal para fins de uso. Temos que colocar esse tema na agenda institucional, na agenda política do Brasil", afirma.

Ele dá um exemplo de casos que chegam aos tribunais. "Era pequena quantidade de drogas, mas o policial considerou que era tráfico, não para uso. Já enquadra como traficante. A partir daí: 'Encontrei algumas moedas com ele. Significa que ele estava recebendo recursos'. O policial é a testemunha contra este que foi preso em flagrante."

Experiência de Portugal é exitosa, diz ministro

"Portugal tem suas peculiaridades. É um país de 11 milhões de pessoas. Portanto, tem controles sociais outros, mas isso é uma política exitosa e próxima da nossa cultura." No caso do Uruguai, Gilmar afirma que houve uma "estatização da maconha". "A gente deveria avançar para esse debate sobre a liberação do uso."

O ministro já defendeu essa medida em um voto no plenário do Supremo. "Talvez em casos extremos, como o crack, fazer uma internação compulsória para fins de tratamento, mas não para fins de prisão." Em junho, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou lei permitindo a internação obrigatória de viciados.

Uma massa de presos por tráfico esconderia várias pessoas que eram apenas usuárias, entende Gilmar Mendes. "E a partir daí nós vamos criando essa massa. Se fala que temos 180 mil presos por tráfico. Me parece um número exagerado. Talvez aí esteja misturado."

Para Gilmar, solução é ressocializar

Para o ministro, é preciso investir em ressocialização para minar o poder das organizações criminosas nas cadeias. "Essa política sistemática de encarceramento é um problema grave. Nós temos que olhar essa questão de maneira mais ampla inclusive no que diz respeito a trabalhos de ressocialização", iniciou.

E ressocialização é impossível? Não, não é impossível. É possível se fazer, inclusive com os recursos já existentes, por exemplo

Gilmar Mendes, ministro do STF

Ele cita uma experiência em São Paulo, as chamadas cotas de trabalhadores terceirizados vindos das penitenciárias. "Nós trabalhamos com a ideia de cotas de terceirizados, As empresas terceirizadas absorverem uma parte de egressos do sistema prisional. É possível se fazer isso, nós fizemos, à época com o governo de São Paulo."

Essa opção tiraria força de facções, como o PCC. "É oferecer alternativas, porque o que acontece hoje é que nós temos um ambiente em muitos locais que são muito propícios para a atividade criminosa e é preciso, portanto, que a gente dê garantias."

Documentário "Primeiro Cartel da Capital"

O selo MOV.doc, destinado a produções documentais do UOL, lançou a série PCC - Primeiro Cartel da Capital. Com direção de João Wainer (diretor dos documentários "Junho - o mês que abalou o Brasil" e "Pixo"), a série de quatro episódios é o resultado de um trabalho de apuração da equipe de UOL Notícias.

Foram seis meses com gravações em São Paulo, Santos, Rio de Janeiro, Rio Branco e Nápoles (Itália). O resultado é uma série documental que busca entender como um grupo de oito detentos se transformou numa facção que hoje tem mais de 33 mil membros e tenta conquistar o monopólio do tráfico de drogas no país.

O documentário tem reportagem, pesquisa e produção dos jornalistas Flávio Costa, Luís Adorno, Aiuri Rebello e Eduardo Militão, e apresentação de Débora Lopes.

Ouça também o podcast Ficha Criminal, com as histórias dos criminosos que marcaram época no Brasil. Este e outros podcasts do UOL estão disponíveis em uol.com.br/podcasts, no Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e outras plataformas de áudio.