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CNJ entende que desembargador infringiu nova lei de abuso de autoridade

Marcelo Oliveira

Do UOL, em São Paulo

27/07/2020 19h38

Resumo da notícia

  • Em decisão, CNJ afirmou que desembargador cometeu, na esfera criminal, desacato e crime de carteirada
  • Criado pela nova lei de abuso de autoridade, o crime de carteirada prevê punição para aquele que invoca sua condição para fugir de uma punição
  • A denúncia, contudo, caberá ao MPF; a PGR, responsável por processar desembargadores, afirma que se manifestará oportunamente
  • Se condenado, Siqueira não deve ficar preso e poderá ser condenado à prestação de serviços à comunidade

Ao determinar neste domingo (26) reclamação disciplinar contra o desembargador Eduardo Siqueira, o Corregedor Nacional de Justiça, Humberto Martins, afirmou que "por vias reflexas" (indiretamente), o juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo infringiu a nova lei de abuso de autoridade e o artigo 331 do código penal (crime de desacato).

O desembargador se tornou conhecido nacionalmente após ter sido flagrado em vídeo ofendendo um guarda municipal em Santos ao ser multado por se recusar a usar máscara num passeio na orla da cidade

A lei 13869, mencionada por Martins, é a nova lei de abuso de autoridade, aprovada com vários vetos pelo presidente Bolsonaro (sem partido). O artigo 33, citado pelo corregedor, não sofreu cortes.

Em seu parágrafo único, prevê punição de 6 meses a dois anos de detenção, pelo "crime de carteirada", definido no texto como se utilizar de cargo ou função pública ou invocar tal condição "para se eximir de obrigação legal".

O corregedor, porém, não representou (denunciou) Siqueira por esses crimes, uma vez que os processos do Conselho Nacional de Justiça são administrativos e podem afetar apenas a carreira do juiz investigado. O CNJ não tem atribuição criminal.

Se condenado pelo conselho, ele pode ser punido com advertência, censura, remoção obrigatória, disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço e demissão.

Segundo o CNJ, apenas ao final do processo é que a decisão do conselho será encaminhada à Procuradoria Geral da República, uma vez que desembargadores são processados perante o Superior Tribunal de Justiça.

Acusação criminal depende do MPF

Entretanto, Siqueira poderá ser processado na esfera criminal antes mesmo do fim do processo administrativo.

Como "titular da ação penal", ou seja, o responsável pela denúncia, o MPF pode instaurar "de ofício" (por conta própria) um procedimento investigatório criminal (investigação feita pelo MP) contra o desembargador.

O MPF pode ainda ser provocado (receber uma denúncia e iniciar a investigação) ou abrir a investigação e começar a colher elementos. Segundo a Secretaria de Comunicação da PGR, não houve ainda nenhuma das duas hipóteses.

"A PGR analisará o caso e adotará eventuais providências oportunamente, considerando que os tribunais superiores estão em recesso forense", afirmou a PGR em nota.

A atribuição é da subprocuradora-geral da República Lindora Maria Araújo, designada pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, para atuar nos casos de competência originária, ou seja, processos que tramitam contra réus que têm direito a foro privilegiado no STJ (Superior Tribunal de Justiça), como governadores, deputados estaduais, desembargadores, procuradores regionais da República e procuradores de Justiça.

O MP-SP (Ministério Público do Estado de São Paulo) determinou hoje a instauração de inquérito civil público contra o desembargador para apurar ilícito de improbidade administrativa. Na esfera cível não há foro privilegiado para autoridades.

Nova lei de abuso instituiu o crime de carteirada

"Havia dificuldade de enquadrar o crime de carteirada até a criação da nova lei de abuso de autoridade. O artigo 33, parágrafo único, é perfeito e categórico. Aquela conduta dele se encaixa como uma luva. O desembargador invocou a condição de autoridade dele para não cumprir a obrigação de usar a máscara. Já o crime de desacato ocorreu quando ele chama o guarda de 'analfabeto', não assina a multa, rasga-a e a joga no chão", afirma o mestre em direito Fernando Tadeu Marques, professor de processo penal da PUC-Campinas.

Além do processo administrativo, no CNJ, e de eventual ação penal pela carteirada e pelo desacato, no STJ, Siqueira pode ser também processado na esfera cível pelo guarda municipal Cícero Hilário Roza Neto, vítima do desacato, caso ele entenda ter sido ofendido pelo desembargador.

Para Marques, contudo, não caberia, em tese, crime contra a honra. "Ao dizer estou com um 'analfabeto' aqui ele estava desacatando o guarda, não o ofendendo diretamente", afirmou o professor da PUC-Campinas.

"Eu me senti humilhado diante dos meus filhos de 10, 15 e 17 anos. Como eu explico o que aconteceu para eles? Sempre tiveram muito orgulho do meu trabalho. A menina de 15 anos chorou. É muito difícil para mim saber que eles viram esse vídeo", desabafou o guarda Hilário em entrevista ao Fantástico, da TV Globo.

Procurado pelo UOL, o guarda disse acreditar que "não tenha mais nada para falar sobre o assunto".

O Tribunal de Justiça de São Paulo chegou a instaurar procedimento para apurar o caso, mas o CNJ entendeu que bastava a apuração da corregedoria para não gerar duplicidade. O TJ informou, a pedido do CNJ, que o desembargador respondeu a 42 processos disciplinares no tribunal.

Desembargador diz ter se arrependido

O desembargador Siqueira divulgou uma nota em que disse ter se arrependido do ato e pediu desculpas pela atitude: "Eu me exaltei, desmedidamente, com o guarda municipal Cícero Hilário, razão pela qual venho a público lhe pedir desculpas", escreveu.

O pedido de desculpas, contudo, na avaliação de vários juristas, não deve impedir a tramitação de processos administrativos, criminais e cíveis contra ele, mas podem pesar em seu julgamento.

Advogados do guarda estudam ações

Segundo os advogados João Manoel Armôa Júnior e Jefferson Douglas de Oliveira, que defendem o guarda municipal na esfera criminal e cível, respectivamente, há intenção de processar o desembargador em ambas as esferas, contudo sua defesa está adotando "cautela" e aguarda os desdobramentos do processo administrativo no CNJ para decidir os próximos passos.

A Prefeitura de Santos entende que a honra do município não foi atingida no episódio, mas que, a princípio, houve ofensa à honra dos guardas (crime de injúria) e que cabem a eles processo nesse sentido, uma vez que a prefeitura não pode representá-los judicialmente.

Desembargador não deve ser preso caso condenado criminalmente

Tanto o crime de desacato, quanto o de carteirada, previsto na nova lei de abuso de autoridade, têm penas de 6 meses a dois anos de detenção, cabendo acordo de não-persecução penal, para impedir a denúncia, desde que o desembargador admita a culpa, segundo o professor da PUC-Campinas.

Caso não aceite negociar com o MPF, após o oferecimento da denúncia caberá a suspensão condicional do processo, e caso ele não aceite, poderá ser condenado à pena máxima de 4 anos em regime aberto ou ter a pena de prisão convertida em penas alternativas, como prestação de serviços à comunidade.