Contra Doria, distribuição de comida na Ceagesp tem fila de 1 km sob chuva
Um mês após o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) visitar a Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo) e anunciar o cancelamento de sua privatização, os permissionários do entreposto resolveram ampliar a distribuição de alimentos tradicionalmente realizada pela instituição para realizar um protesto contra o governador João Doria (PSDB) em virtude do aumento do ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços) para a cadeia produtiva dos hortifrutigranjeiros.
O protesto/doação causou uma fila de mais de 1 km de comprimento. Às 12h50, ela começava no pátio do entreposto (portão 7), seguia pela avenida Gastão Vidigal e seguia até a rua Hayden (portão 1 da Ceagesp). No pátio do entreposto, faixas amarelas diziam frases como: "Mais ICMS. Menos comida".
Na fila, milhares de pessoas vindas de todas as regiões da cidade e da Grande São Paulo buscavam um kit com legumes, verduras e frutas, distribuídos sem padrão — o que causou reclamações e frustração. Houve tumulto e aglomeração e não foi respeitado o distanciamento social, especialmente do lado de fora do entreposto.
A fila quilométrica começou a se formar às 22h de ontem (13), segundo comerciantes da região. Devido à chuva, a distribuição, prevista para começar às 14h, foi antecipada para as 12h45.
A aposentada Maria Hermógenes, 77, foi uma das primeiras a chegar, às 7h40 da manhã e pegou a senha 32. Recuperada da covid-19, ela saiu de casa, no Jabaquara, às 4h. Ela saiu decepcionada da fila, com um repolho queimado e sem as bananas com que tanto sonhava, literalmente.
Acordo de noite com vontade de comer banana. Vi banana em outros pacotes. Pedi, mas não me deram."
Maria Hermógenes, aposentada
Dona Maria ficou 18 dias hospitalizada com covid-19 em agosto, sendo uma semana na UTI. Ela luta contra uma anemia, sequela da doença, e precisa reforçar a alimentação.
Desempregada, Tainá Ferreira de Oliveira, 20, trouxe duas crianças para a fila, o filho de 3 anos e o bebê de uma vizinha, de 10 meses, que ela protegia da chuva com um saco plástico preto.
Ela veio da Brasilândia, zona norte, de carona por intermédio de um transporte organizado por um vizinho. Ela estava com a senha 139.
A falta de informações de parte das pessoas na fila levaram muitas a acreditar que haveria distribuição de arroz, feijão e outros produtos de cesta básica. "Não tem arroz", reclamavam pessoas na fila.
Suzanilda Maria de Lima, desempregada e moradora de Francisco Morato, na Grande São Paulo, a três trens e um ônibus da Ceagesp, gritava de raiva sob a chuva.
"Foi a primeira e última vez que eu venho ao Ceagesp. Achei que teria arroz, feijão. Essa porcaria aqui eu cato no lixo. Você não merece isso, Denise", dizia ela para a amiga Denise Santos da Silva, costureira de 35 anos, a quem acompanhava. Elas saíram às 4h30 de Morato e chegaram à Ceagesp às 6h, e pegaram as senhas 1123 e 1124.
Frustrada, Suzanilda balançava uma alface com folhas estragadas e um repolho queimado que recebeu. "Isso é um melão? Parece uma cebola!", reclamava ela, decepcionada com o tamanho do melão japonês que havia no kit da amiga.
Os gritos de decepção e revolta chamaram a atenção de outras pessoas que estavam por perto esperando transporte para voltar para casa. "Se não quer, dá pra mim?", dizia uma senhora para Suzanilda.
Tumulto e aglomeração
Às 14h, horário inicialmente previsto para a distribuição da comida, houve tumulto. Gente que havia chegado àquela hora ficou revoltada ao ser informada de que sem senha não entrariam no entreposto. "Queremos nosso kit, queremos nosso kit", reclamavam.
O tumulto causou aglomeração e bloqueou duas faixas da avenida Gastão Vidigal, o trânsito na avenida chegou a ser bloqueado na altura do portão 5, causando fila de caminhões para sair da Ceagesp.
Naquela hora, dez agentes comunitários de saúde da UBS Parque da Lapa falavam para o vento. Ao menos o uso de máscaras era viável. Entretanto, as recomendações de saúde fizeram ao menos uma pessoa desistir de tentar pegar um kit.
A nova variação do vírus é mais transmissível, evite aglomerações, sabemos que neste momento não é possível, mas, ao menos, usem máscara".
Agente comunitário para a população que se aglomerava em fila na Ceagesp
O reciclador Josias Campos, 60, que vive num albergue perto da Ceagesp, pegou um kit no esquema regular de distribuição na quinta passada e culpou a divulgação na internet pelo tumulto.
"Semana passada eu cheguei 13h30 e peguei meu kit. Soube pelo boca a boca na Ceagesp. Se pudesse, queria pegar de novo, mas a divulgação na internet fez gente da cidade inteira vir. Estou tratando dos rins e sou de grupo de risco. Não posso ficar em aglomeração", disse ele, olhando o tumulto a uma distância segura.
Protesto contra aumento do ICMS
Segundo o sindicato dos permissionários do Ceasa, alimentos frescos em São Paulo sofrerão forte alta nos preços a partir de amanhã quando deve entrar em vigor o Decreto Estadual 65.254/2020, que prevê aumento de 4,14 % no ICMS sobre frutas, legumes e verduras. De acordo com o sindicato, a medida pode impactar o preço final de hortifrutigranjeiros em até 10%.
Com uma camisa com o rosto do presidente Bolsonaro, o permissionário Márcio Neto filmava e fotografava jornalistas e a distribuição. Ele vende embalagens na Ceagesp e afirma que o aumento do ICMS, se mantido, vai encarecer a comida na mesa de todos e "as pessoas que estão na fila hoje não vão conseguir comprar", disse ele.
Segundo ele, o protesto/doação tinha apoio dos permissionários e do movimento de agricultores Tratoraço para ampliar a iniciativa da direção da Ceagesp. Desde novembro sob o comando do coronel da reserva da PM Ricardo Augusto Nascimento de Mello, ex-chefe da Rota (tropa de elite da PM de São Paulo), a companhia, que está no guarda-chuva do Ministério da Economia, instituiu a distribuição de alimentos aberta para moradores das comunidades da região às quintas-feiras.
Mais de 3 mil kits distribuídos
Segundo a Ceagesp, a doação de alimentos pelo Banco de Alimentos da companhia acontece há anos, apenas para entidades cadastradas. Em novembro começou a fila.
A empresa nega que a distribuição tenha saído de controle e que foi dentro do esperado. Mais do que os 3 mil anunciados segunda-feira no Facebook da companhia foram entregues devido o apoio dos permissionários e produtores rurais.
Sobre as reclamações, a Ceagesp disse que os kits não eram padronizados e o Sindicato dos Permissionários informou que o manuseio pode ter causados danos em especial às hortaliças.
Sobre o protesto, a Ceagesp disse que ele não recebeu apoio oficial da direção, contudo, como ocorreu de forma pacífica, a diretoria não reprimiu o protesto,
Quanto à camiseta do permissionário Márcio, o sindicato nega que fosse oficial da manifestação. Segundo a entidade, as manifestações políticas eram individuais e que o movimento é setorial e não político, em prol da cadeia produtiva de hortifruti.
Procurado, o governo Doria confirmou informação que já circulava entre os permissionários e revogou as mudanças nas alíquotas dos alimentos e também de medicamentos.
Segundo a Secretaria da Fazenda do Estado o setor de alimentos vem sendo beneficiado há anos por uma política de benefícios fiscais em série.
De acordo com o a mesma fonte, o plano do governo com o ajuste fiscal é aumentar a arrecadação em R$ 7 bilhões para aliviar o impacto da pandemia de covid-19 na receita estadual.
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