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Luiz Gama, ícone da abolição, recebe título de Doutor Honoris Causa da USP

Especial Monumentos -  Busto do jornalista e abolicionista Luiz Gama, no Largo do Arouche - Keiny Andrade/UOL
Especial Monumentos - Busto do jornalista e abolicionista Luiz Gama, no Largo do Arouche Imagem: Keiny Andrade/UOL

Guilherme Henrique

Colaboração para o UOL, de São Paulo

29/06/2021 17h45

Um dos mais importantes intelectuais do país e figura central na luta abolicionista brasileira, Luiz Gama (1830-1882) recebeu o título de Doutor Honoris Causa concedido pela USP (Universidade de São Paulo). A homenagem póstuma foi proposta pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) e aprovada pelo Conselho Universitário da USP em reunião realizada nesta terça-feira (29) virtualmente. Agora, ele se torna o primeiro brasileiro negro a receber a honraria da instituição.

Durante a reunião do Conselho, membros do colegiado destacaram a atuação intelectual e política de Luiz Gama ao longo do século 19. "Ele está sendo estudado em universidades do mundo inteiro, como Princeton, nos EUA, e Hamburgo, na Alemanha. Nesse momento estratégico da USP, com atuação inclusiva, que já tem 50% de suas vagas para alunos de escola pública e que possui uma política consistente de ações afirmativas, isso é um recado com impacto social importantíssimo", afirmou Brasilina Passarelli, professora e diretora da ECA.

Luiz Gama nasceu em Salvador (BA) e, em carta enviada ao também advogado Lúcio de Mendonça, conta ser filho de Luiza Mahin, mulher africana livre com participação em insurreições ocorridas na capital baiana. No mesmo documento, Luiz Gama relata ter sido vendido por seu pai a um contrabandista aos 10 anos, quando foi para São Paulo. Aos 17 anos completou seu processo de alfabetização e, no ano seguinte, fugiu do cativeiro.

A partir daí, Luiz Gama inicia sua trajetória política e social. Ele foi assistente de Furtado Mendonça, chefe de polícia e professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Impedido pela legislação da época de estudar na instituição, ele adquiriu conhecimento jurídico ao participar das aulas como ouvinte.

Durante a reunião do Conselho da USP, o professor Floriano Peixoto de Azevedo, diretor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, disse que Gama "é um dos nossos".

Ele frequentou a Faculdade de Direito do Largo São Francisco e teve respeito de muitos dos professores, tido como um verdadeiro jurista, ainda que não formado. Ele tem uma trajetória fundamental para a história do Brasil e também para a história do Direito no país
Floriano Peixoto de Azevedo, professor e diretor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco

Gama usou seu conhecimento jurídico para libertar centenas de negros escravizados. Bruno Rodrigues de Lima, doutorando em História e Teoria do Direito pelo Max Planck Institute, em Frankfurt, na Alemanha, descobriu documentos que mostram como ele, ainda em início de carreira como advogado, conseguiu a liberdade para 217 negros escravizados. A disputa judicial ocorrida em 1869 envolvia o espólio do comendador português Manoel Joaquim Ferreira Netto. Segundo Lima, trata-se da maior ação coletiva de libertação de escravizados conhecida nas Américas.

Autodidata, Luiz Gama dedicou sua trajetória ao mundo das letras. Publicou textos eruditos sobre diversas áreas do conhecimento, das letras e comunicação à política, história, religião e filosofia. Sua produção intelectual inclui discursos, peças jurídicas, artigos, crônicas e poesias, que têm servido como importante registro histórico de um país às portas da proclamação da República, em 1889.

Suas publicações incluem o livro poesias de "Primeiras Trovas Burlescas", de 1859, e o "Diabo Coxo", de 1864, o primeiro jornal ilustrado de São Paulo, confeccionado em parceria com o ilustrador italiano Ângelo Agostini. Além disso, publicou em periódicos do Rio de Janeiro e de São Paulo textos que defendiam a liberdade de imprensa e denunciavam ilegalidades contra a população negra.

Para Lígia Ferreira, professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autora de obras como "Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro" (Edições Sesc São Paulo) e "Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas" (Editora Imprensa Oficial do Estado de São Paulo), o título concedido pela USP faz justiça a trajetória do intelectual.

É um reconhecimento póstumo, porém justo. Ele foi um pioneiro da campanha abolicionista e republicana. A obra de Luiz Gama nos mostra a importância dele na divulgação de ideias que foram fundamentais para o Brasil da época. Ele precisa ser lido sempre e cada vez mais. Certamente o título de Honoris Causa é uma maneira de enxergarmos a trajetória de uma pessoa que libertou mais de 500 escravos, que trabalhou pelos direitos humanos e que sempre valorizou o conhecimento. Luiz Gama é um monumento que os brasileiros precisam conhecer urgentemente
Lígia Ferreira, professora do Departamento de Letras da Unifesp

Nos últimos anos, a trajetória de Luiz Gama tem sido resgatada para além do ambiente acadêmico. Em 2015, ele recebeu o título póstumo de advogado pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Dois anos depois, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco deu a uma de suas salas o nome do intelectual. Foi a primeira vez que alguém que não deu aula na faculdade recebeu tal honraria.

No ano seguinte, o Congresso Nacional deu a Gama o título de "Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil" e o inscreveu no livro dos heróis da pátria.