'Fiquei 5 dias sem comer', diz indígena que pegou covid em colheita de maçã
Quando saiu de sua aldeia em Paranhos (MS) para trabalhar nos pomares de maçã em Vacaria (RS), o indígena da etnia guarani, que preferiu omitir seu nome e aldeia, não fazia ideia da odisseia que viveria.
Distante mais de mil quilômetros de sua terra, teve de lidar com a covid-19, seu pagamento foi reduzido e pagar para voltar para casa.
A doença atingiu o que ele mais precisava para preencher os sacos de maçã: sua força. Devido à fraqueza pela falta de apetite e às dores no corpo, a temporada de trabalho, que duraria de janeiro a maio, foi de apenas 23 dias. Ele, que ganharia R$ 70 por dia de trabalho, acabou ficando com R$ 1.610.
Segundo seu relato, no alojamento oferecido pela Rasip Agro Pastoril S/A, uma das maiores produtoras de maçã do Brasil, havia 12 trabalhadores por quarto, divididos em seis beliches. A situação não permitia o distanciamento social adequado.
Quando os sintomas se manifestaram, foi levado para uma área de isolamento. "O lugar era sujo, cheio de mosquito, e o banheiro era imundo. Nem máscara deram. No primeiro dia lá, me deram antibiótico. Eu nem tinha diagnóstico de nada ainda. Depois fui perdendo a fome e fiquei uns cinco dias sem comer", conta.
O atendimento por profissionais de saúde também era precário, segundo ele relata. "Não tinha médico, era apenas uma enfermeira. Ela aparecia a cada dois ou três dias para verificar quem estava lá. Eram uns 20 no isolamento."
O guarani ficou oito dias em isolamento antes de realizar o teste. "Eu já estava fraco. Levaram 12 pessoas para fazer o teste. Eram quatro em cada carro. Era aquele teste rápido no dedo. Só o meu resultado deu negativo", diz. Contudo, era um falso negativo.
Segundo ele, a empresa mandou quem tivesse o exame negativo voltar a trabalhar. "Mas como eu ia trabalhar se fiquei dias sem comer?"
Quando saiu do isolamento, não conseguiu voltar ao pomar. "Só consegui arrumar minha coberta e deitar. Não saí de lá o dia todo. No outro dia, fui para o escritório pedir a conta. O que importa para eles é só lucro", afirma.
Questionada, a Rasip não se pronunciou sobre o assunto.
'Precisa trabalhar no que tem'
Para quem vai para a colheita, se promete a volta às cidades onde moram com ônibus oferecidos pelas empresas. Mas o retorno é garantido apenas a quem permanece até o fim da colheita. Caso contrário, os trabalhadores têm de bancar as despesas de retorno.
Foi o que aconteceu com o indígena entrevistado. Com sintomas da covid-19, teve de enfrentar 15 horas de estrada. "Peguei três ônibus e um carro que me levou até a aldeia. Paguei quase R$ 500. O trajeto não foi fácil."
Roberto Liebgott, coordenador do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) na região Sul, afirma que o contingente de trabalhadores para a colheita da maçã é praticamente todo indígena, de etnias como guarani, kaiowá, terena, kaingang e xoklengs.
"Nos últimos anos, a mão de obra tem sido recrutada de comunidades indígenas, especialmente das que têm uma situação de vulnerabilidade econômica", explica Liebgott.
A colheita da maçã, ou de outros alimentos como a uva, o alho e a cebola, se torna uma possibilidade para a manutenção familiar por um período do ano. Eles migram sabendo que estarão ausentes das comunidades por um longo período.
Roberto Liebgott, coordenador do Cimi no Sul
De acordo com o Cimi, ao menos 13 mil indígenas viajam todos os anos para trabalhar na colheita. O guarani entrevistado é um deles: "Para quem estuda pouco, é difícil ganhar dinheiro. A gente precisa trabalhar no que tem", diz.
Em nota enviada à reportagem, o Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul informou que "constam nos arquivos do MPT-RS oito procedimentos em face da Rasip Alimentos como um todo desde 2007 por motivos variados".
"Quatro deles já foram arquivados. Um deles, de 2009, foi arquivado após a celebração de um Termo de Ajuste de Conduta com a empresa estabelecendo obrigações relacionadas a registro de jornada de trabalho. Dois deles se encontram em acompanhamento à espera de inspeções e laudos e um está ativo."
'Pessoas trabalham doentes'
Outro indígena de Mato Grosso do Sul, que também não quis se identificar, contou sobre as dificuldades dos safristas que colhem maçã nos pomares da Fischer, outra grande empresa do ramo, com sede em Fraiburgo (SC).
Ele afirma que, neste ano, antes de sair da aldeia, o representante da empresa já orientava que, se o MPT aparecesse, "era para mentir", caso fossem questionados sobre qualquer coisa referente às condições de trabalho.
Segundo o indígena, "os alojamentos tinham ao menos três turmas, com cerca de 37 a 40 trabalhadores, que dormiam em beliches um ao lado do outro". "Se alguém pegasse covid-19, era levado para o isolamento."
Outro problema é o contato com os agrotóxicos. "Quando o sol esquenta, o veneno seca e fica um pó branco nas folhas. A gente acaba inalando o veneno. Aquilo fede e parece que gruda no corpo. Você passa dias com aquele cheiro", conta. "As pessoas ficavam com febre e dor de cabeça, vomitavam e tinham diarreia."
Segundo ele, muitos trabalhadores não recorriam ao ambulatório porque era cobrado. A consulta médica custava R$ 35, e os remédios, entre R$ 60 e R$ 70.
As pessoas trabalham doentes. Escolhem não ir ao ambulatório para não perder um dia de trabalho.
Indígena que trabalha na colheita da maçã em SC
O MPT de Santa Catarina informou que há um inquérito civil de 2019 que investiga a Fischer por trabalho escravo. De acordo com o órgão, a investigação visa entender "de que forma os trabalhadores arregimentados da terra indígena Yvy Katu, localizada em Japorã (MS), foram trazidos para as plantações".
O inquérito, que traz diversas situações relatadas pelos indígenas, corre em sigilo de Justiça. A Fischer não respondeu os questionamentos até a publicação deste texto. Se responder, será atualizado.
Contratação clandestina
José Carlos Pacheco, presidente do coletivo de trabalhadores indígenas de Mato Grosso do Sul e coordenador-adjunto da Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo em Mato Grosso do Sul, explica que os trabalhadores que saem para os pomares na clandestinidade estão sujeitos a inúmeros riscos.
"Neste ano saíram entre quatro e seis ônibus clandestinos. Estes trabalhadores estão sujeitos a trabalharem por diária e sem carteira assinada. Ficam em moradias precárias, pagando aluguéis caríssimos. Trabalham, trabalham e trabalham, mas que direito eles têm?", questiona.
De acordo com a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, do governo federal, entre 2019 e 2020, auditores fiscais realizaram 242 ações no cultivo da maçã. Foram resgatados 233 trabalhadores, nenhum durante a pandemia.
A Funai (Fundação Nacional do Índio) informou que monitora a situação por meio das unidades descentralizadas do órgão na região Sul. Em nota, explicou que "as denúncias referentes à relação trabalhista, bem como sobre o descumprimento da legislação regedora da matéria, são encaminhadas diretamente pelos indígenas aos órgãos competentes, que têm competência para tratar da questão".
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