20 anos após maior apagão de energia, crise elétrica preocupa setor
Vinte anos depois do maior racionamento de energia elétrica da história do país, a ameaça de uma nova crise começa a figurar como principal receio dos empresários nos próximos meses.
Além do temor crescente de que o governo possa impor redução compulsória do consumo nos próximos meses e que o país possa conviver com blecautes até o fim do ano, há preocupações financeiras com empresas do segmento e com a alta das tarifas com a operação cada vez mais cara do sistema para tentar driblar o fantasma do apagão.
Na primeira semana de maio de 2001, depois de anos de alertas sobre uma crise iminente no setor elétrico, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tomou conhecimento da crise que se aproximava.
Em 18 de maio, deu o sinal verde para o maior plano de racionamento da história do país e um dos maiores já implementados no planeta. A partir de 1º de junho de 2001, o programa reduziu o consumo em média 20% em relação aos meses de maio, junho e julho de 2000.
Quando o plano entrou em vigor, FHC procurou em seu diário se nas reuniões de março e abril algum ministro tinha pintado um quadro tão sombrio. Notou que não escrevera nada que indicasse que o país estava à beira da crise que agora batia à porta.
Havia uma clara descoordenação no setor elétrico. O presidente descobriu que a palavra racionamento não podia ser mencionada no Ministério de Minas e Energia. Cerca de 90% da eletricidade era produzida por hidrelétricas, mas o esvaziamento dos reservatórios dessas usinas ao longo de anos, sem planejamento, tinha deixado o sistema vulnerável.
O país apostara tudo em usinas térmicas a gás natural, mas elas mal tinham saído do papel, com investidores alegando risco cambial e demora em obter licenças ambientais.
Para evitar um país sem luz, técnicos defendiam cortes rotativos de seis a 12 horas que mergulhariam São Paulo e Rio de Janeiro em caos urbano.
O gerente da crise
Se o governo levou meses para entender a gravidade da crise, levou dias para criar um núcleo para gerenciá-la. Instituiu-se a Câmara de Gestão da Crise de Energia, sob a liderança do ministro da Casa Civil, Pedro Parente, que pediu poderes terminativos para ela.
Não podia existir nem sequer a possibilidade de que se tomasse uma decisão de manhã e de tarde fosse necessário ir ao Ministério da Fazenda ver se havia orçamento para resolver a questão. Comunicação e transparência eram essenciais.
Quando marqueteiros defenderam excluir a palavra crise do título da Câmara de Gestão, Parente descartou. "Não, vivemos uma crise. Não adianta esconder da população."
Em vez de blecautes rotativos, apostou-se em um plano que combinava ameaça de cortes, tarifas mais altas para quem excedesse as cotas e bônus aos que economizassem. As metas de redução de consumo das indústrias variavam de 15% a 25%, sendo as maiores aplicadas às que mais usavam energia, reduzindo impactos sobre a população.
O governo jogou todas as fichas no engajamento da sociedade. Para as empresas, buscou-se flexibilidade para evitar quedas bruscas de produção. Indústrias e comércio poderiam negociar certificados de negociação de redução.
O plano deu certo: 93% dos consumidores residenciais receberam bônus ao terem diminuído seu consumo. O racionamento foi extinto em 28 de fevereiro de 2002, depois de nove meses de vigência no país (apenas a região Sul ficou fora por estar com reservatórios cheios e não haver linhas de transmissão com capacidade suficiente para escoar energia para o Sudeste).
A popularidade de FHC caiu, e a crise contribuiu para a guinada à esquerda na política, com a eleição de Lula para seu primeiro mandato como presidente.
Vinte anos depois, o setor elétrico vive uma nova crise. O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, já chegou a dizer que o país poderia passar por um novo racionamento. Um alerta constante paira sobre o setor.
A matriz mudou em duas décadas: as hidrelétricas respondem por 63,5% da geração de energia, enquanto eólicas e solares hoje respondem por quase 12% (em 2001, não respondiam nem por 1%) e as térmicas hoje geram cerca de 20% da demanda.
Cerca de 20% da energia do Sudeste está sendo gerada por usinas eólicas no Nordeste e de lá é escoada por linhas de transmissão entre as duas regiões.
"As usinas eólicas hoje estão salvando o país neste momento", diz a presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), Elbia Gannoum.
As eólicas no Nordeste conseguem gerar com um índice de eficiência que em alguns momentos chega a 60%, dobro da média internacional.
A estiagem atual impacta os reservatórios do Sul e Sudeste, que respondem por 75% do armazenamento do país. "O sistema está vulnerável e podemos ficar sujeitos a blecautes nos horários de maior consumo durante esse período seco", diz Adriano Pires, sócio do Centro Brasileiro de Infraestrutura e que contribuiu com o plano de racionamento de 2001.
Em 31 de agosto, o governo anunciou a concessão de bônus para consumidores que reduzam seu consumo de energia em relação a uma linha de base histórica.
"Entendo que este mecanismo anunciado é um passo na direção correta, embora não esteja seguro que seja suficiente", afirma o consultor Luiz Maurer, que por anos trabalhou na área de energia no Banco Mundial.
Erros recorrentes
O quadro atual mostra que o país não aprendeu com a história. A Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE), órgão estatal de planejamento criado em 2004, vive, a cada exercício, a ameaça de falta de recursos para manter seu trabalho.
Decisões da agência reguladora têm sido contestadas pelo TCU (Tribunal de Contas da União). No setor de gás natural, a desverticalização ainda não foi concluída.
A política continua interferindo na gestão das empresas estatais. A Eletrobras conduziu, no início do ano, um processo de contratação de um executivo para substituir Wilson Ferreira Jr., que, por não acreditar na venda da estatal nesse mandato presidencial, decidiu dirigir a BR Distribuidora.
A consultoria Korn Ferry liderou o processo, atropelado pelo Executivo, que nomeou o secretário de energia elétrica do Ministério, Rodrigo Limp, para chefiar a estatal.
A crise hídrica fez aumentar o preço da energia no mercado de curto prazo. Resultado: algumas comercializadoras tiveram de honrar contratos a preços mais altos que os previstos.
Com isso, no início de agosto, pouco mais de dois anos depois da quebra das empresas Vega e Linkx que resultaram em um rombo de R$ 200 milhões, uma comercializadora, a Argon, ingressou com um pedido de recuperação judicial na Justiça de São Paulo.
Há rumores de que outras comercializadoras também estão com dificuldades e renegociam contratos para evitar inadimplência. O estresse deverá permanecer até fevereiro de 2022, quando ficará claro o cenário de abastecimento do próximo ano.
As distribuidoras estão preocupadas com a queda do consumo e o aumento das contas de luz, o que pode elevar a inadimplência. Já as geradoras hídricas têm outra preocupação. A estiagem reduz a capacidade de gerar energia, ou seja, de atender a contratos.
Elas terão de compor seus contratos futuros em cenário de estresse. Agora a liquidez é nula, e os preços estão chegando a R$ 350 o MWh para 2022.
O custo de evitar um racionamento terá impacto sobre as contas de luz. Em setembro, o sistema de bandeiras tarifárias recebeu um novo patamar, chamado de escassez hídrica, que eleva em R$ 14,20 o consumo a cada 100 kWh consumidos.
Se a estiagem se prolongar até o próximo ano, poderá ser feito um novo reajuste na conta. O Idec (Instituto de Defesa do Consumidor) também observa a discussão.
"É preciso equilíbrio e alocação adequada de custos porque o consumidor residencial está pagando todos", diz o coordenador de energia, Clauber Leite.
* Roberto Rockmann é coautor do livro "Curto-Circuito, Quando o Brasil Quase Ficou às Escuras", sobre o racionamento de 2001.
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