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Boate Kiss: 'Anjo da guarda me puxou', diz sobrevivente que perdeu pé

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o UOL, em Porto Alegre

01/12/2021 21h50Atualizada em 02/12/2021 13h21

A sobrevivente do incêndio na boate Kiss Kellen Giovana Leite Ferreira, 28, relatou momentos de desespero e angústia para sair da casa noturna na noite de 27 de janeiro de 2013. Ela foi a segunda vítima a depor no Tribunal do Júri, que começou hoje em Porto Alegre e deve se estender por cerca de 15 dias.

A jovem sofreu queimaduras em 18% do corpo e teve um dos pés amputados. As marcas nos braços chamaram a atenção do juiz Orlando Faccini Neto logo no início do depoimento. Foi quando a jovem retirou a prótese para mostrá-la ao magistrado.

"A gente vive em uma sociedade do corpo perfeito e comecei processo de aceitação [do corpo] no ano passado para cá. Eu tinha medo de sair na rua e as pessoas me julgarem por isso, pelo corpo perfeito. Então, a partir do ano passado, comecei a usar shorts. Aqui no Rio Grande do Sul é muito calor e eu usava calça jeans até no calorão de 40 graus", contou Kellen.

A jovem foi à boate com amigos e acabou furando a fila para conseguir entrar mais rápido. "A fila estava muito grande, tinha conhecido nosso quase na porta e acabamos entrando com ele."

Disse que praticamente não bebeu naquela noite e não percebeu quando a música parou.

Eu só vi quando cruzou uma multidão na minha frente da pista lá debaixo e aí eu me atinei em correr, porque eu achei que fosse briga. Quando eu corri, eu caí na frente do bar de madeira, o principal, e eu voltei porque eu queria buscar minhas amigas. Um homem todo de branco, acho que foi Deus na hora, meu anjo da guarda, parou do meu lado direito e disse: 'Tu não vai', e me puxou em direção à porta."
Kellen Giovana Leite Ferreira, sobrevivente de incêndio na boate Kiss

A jovem relatou que, na tentativa de sair do local, novamente caiu no chão.

"Então vi que era fogo, porque eu vi meus braços queimarem e era muito, muito calor e um cheiro muito forte", diz. "Eu estava com vestido tomara que caia e eu puxei o vestido, caí ajoelhada, puxei assim [para tapar o nariz e a boca]. Eu rezei, pedi a Deus que eu não queria morrer ali, eu achei que eu ia morrer ali e pensei na minha família. Eu sempre pedi para Deus que ele fizesse a vontade dele na minha vida", relata.

"Eu me atinei de tirar a sandália para não pisar em ninguém e, quando eu virei, eu bati com meu braço na porta, eu sabia que estava na porta, me puxaram para fora."

kellen - Reprodução/TJ-RS - Reprodução/TJ-RS
Sobrevivente Kellen Giovana Leite Ferreira chegou a retirar prótese no começo de depoimento
Imagem: Reprodução/TJ-RS

Cirurgias e enxerto de pele

Da boate, a jovem foi levada às pressas para o Hospital de Caridade por um amigo. Durante o percurso, ele tentava mantê-la acordada e ainda entrou em contato com um tio de Kellen, que mora na cidade.

"Eu fui a primeira a chegar ao hospital de Caridade, ninguém sabia o que tinha acontecido, ele entrou para dizer o que tinha acontecido e amigo me levou para dentro. Meus tios moravam em Camobi [bairro de Santa Maria] e foram para o hospital. Meu estado era tão horrível que minha tia chorava muito e eu só pedia para ficar falando com ela, para me manter acordada."

Durante a madrugada, a jovem foi intubada e levada de avião com outros quatro sobreviventes para Porto Alegre, onde ela ficou internada no Hospital de Clínicas por 78 dias. "Passei por inúmeras cirurgias. Eu fiz enxerto de pele, tirei pele das minhas próprias pernas", contou a sobrevivente.

A jovem contou que, para conseguir a prótese, teve que processar o Estado e o município de Santa Maria. "Essa prótese custa R$ 75 mil. De onde vou ter dinheiro para ter prótese dessas? Eu saí para me divertir naquele dia, não para acontecer isso", desabafou.

Kellen criticou o documentário feito por Elissandro Spohr, sócio-proprietário da Kiss, lançado no começo de novembro.

Dor é isso, não é fazer vídeo e chorar. O que eu passei nesses oito anos, o que eu passei lá dentro, que eu passo na pele, isso é dor. Eu me olhei muito no espelho e chorei por muito tempo por ficar assim."
Kellen Giovana Leite Ferreira, sobrevivente de incêndio na boate Kiss

Hoje, a sobrevivente reside em Pelotas, no sul do estado, e atua como terapeuta ocupacional.

A tragédia deixou, ao todo, 242 mortos e 636 feridos, conta que determina a acusação contra os quatro réus por 242 homicídios simples com dolo eventual (quando, mesmo sem intenção, se assume o risco de matar) e por 636 tentativas de assassinato.

Estão sendo julgados os dois sócios da boate —Elissandro Callegaro Spohr, conhecido por Kiko, e Mauro Londero Hoffmann— e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira: o músico Marcelo de Jesus dos Santos e o produtor musical Luciano Augusto Bonilha Leão.