Insônia, medo e ouvidos atentos: a rotina de vizinhos de barragens em MG
"Você deita na cama e não sabe se aquele 'trem' vai explodir a qualquer hora". Cynthia Diniz Alves, 40 anos, não dorme em paz na época das chuvas. Moradora de Congonhas (MG) ela vive num bairro próximo da barragem Casa de Pedra, da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), e relata vazamentos constantes na estrutura.
Fernanda Tuna, 39 anos, e Andresa Rodrigues, 44, também encontram dificuldades para dormir. Assim como Cynthia, elas também são vizinhas de barragens, cada uma em um município. Fernanda mora em Nova Lima e Andresa em Mário Campos, cidade próxima de Brumadinho, palco de uma das maiores tragédias do mundo envolvendo barragens.
Ao UOL, as três relataram uma rotina de medo, insegurança e descaso das autoridades com a possibilidade de rompimentos. A chance de serem vítimas de um mar de lama e de rejeitos de mineração gera um forte receio, mas não o único: há também a preocupação com a contaminação da água e do solo.
Congonhas: moradora não ouviu sirene tocar
Cynthia vive na mesma casa há 30 anos. Não se recorda exatamente quando começou a ter medo da barragem Casa de Pedra, a 500 metros da sua residência. Mas desde o rompimento em Brumadinho, em janeiro de 2019, não se sente segura.
"Esses dias, sexta, sábado, domingo, eu não conseguia nem fazer comida. Não sabia se ficava vigiando, olhando para a barragem, ou se cuidava da casa e da comida. A gente não vive mais, o psicológico fica abalado", conta.
Na segunda-feira (10), a CSN comunicou a suspensão temporária das operações na Casa de Pedra por causa das chuvas, que já deixaram mais de 300 cidades em situação de emergência no estado. A barragem é uma das 13 localizadas em Congonhas, segundo o cadastro da ANM (Agência Nacional de Mineração). Apesar da classificação de baixo risco, possui alto potencial de dano — o que significa que, se romper, pode provocar forte estrago no município.
Cynthia afirma que é comum ver vazamentos nos muros da barragem e tem receio de que, com as chuvas, ela desabe sobre a vizinhança. Em constante estado de alerta, não confia nas sirenes que servem para alertar a população em caso de rompimento, e diz não ter escutado os alarmes tocarem em alguns testes feitos na cidade.
"Eu estava dentro de casa e não ouvi a sirene tocar. Como deu horário [previsto para a simulação] e eu sabia que ia tocar, fui para fora. Só quando saí é que escutei ela muito longe, muito baixo."
Procurada pelo UOL, a CSN não se pronunciou sobre supostas falhas nos sistemas de alerta.
O filho de Cynthia, de apenas 12 anos, não quer mais ficar em casa. Tem medo de ser atingido. O receio também já a levou a procurar uma nova residência na cidade. Mas a falta de opções e o valor dos alugueis, conta, não permitem que ela se mude.
"Quem tem condição de sair, sai. Mas agora, tendo condição ou não, não estamos achando casa para alugar. Ontem eu fui procurar, vi em dois lugares diferentes, mas quando fomos fechar, já estavam alugadas. Na imobiliária me disseram que não tem mais casas disponíveis para aluguel", relatou.
Mário Campos: vizinha e vítima de Brumadinho
Em 25 de janeiro, a tragédia de Brumadinho completa três anos. A data também marca o pior dia da vida de Andresa Rodrigues. Seu único filho, Bruno, morreu.
Operador de processamentos da Vale, Bruno foi uma das vítimas do acidente, provocado pelo rompimento da mina do Córrego do Feijão. "A Vale dizia a ele que estava seguro. Era isso o que ele pregava na minha casa. Mas que segurança é essa em que você vê lama descendo as serras?", disse ela.
A gente dorme e acorda num pesadelo. É uma bomba-relógio na nossa cabeça"
Andresa Rodrigues, 44, diretora da Avabrum
Andresa integra a diretoria da Avabrum (Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos do Rompimento da Barragem Mina Córrego Feijão Brumadinho). A cidade onde vive, Mário Campos, entra na rota de risco caso uma das 27 barragens de Brumadinho venha a romper —duas das minas são consideradas de alto risco, segundo o cadastro da ANM.
A rotina dos moradores do município, relata, incluem o constante vai e vem de caminhões, muita poeira, e o trauma que reacende a cada barulho diferente.
"Temos medo de tudo. De um barulho na rua, da chuva... É algo que é surreal, é só para quem vive por aqui", conta.
Enquanto membro da Avabrum e mãe de uma das vítimas, ela cobra não só por transparência quanto às situações das barragens, mas também por justiça. As indenizações da Vale ao estado, na visão dela, deveriam ser aplicadas em obras de prevenção e em auxílio às famílias afetadas, sem propagandas à empresa responsável pela mina do Córrego do Feijão.
"Nosso clamor é para que o dinheiro que é do sangue das nossas joias e das nossas lágrimas não seja usado para fins políticos, mas sim que chegue até as pessoas afetadas. Onde esse dinheiro for empenhado, que tenha uma placa em homenagem às vítimas, e não em homenagem a quem as matou."
Nova Lima: muro da Vale retém água das chuvas, diz moradora
Na tarde de quarta-feira (12), Fernanda estava há 48 horas sem fornecimento de água. Antes, havia ficado mais de um dia sem luz. Moradora da região de Macacos, em Nova Lima, ficou ilhada após as principais vias de acesso terem sido alagadas.
Vídeos de inundações em Macacos foram divulgados nas redes sociais, e a região foi tomada por água, lama e medo dos moradores. O município de Nova Lima é cercado por 27 barragens, uma delas em nível 3 de emergência — o mais alto e preocupante, segundo a ANM. A barragem em questão é a B2/B3, da Vale, que tem justamente a região de Macacos na rota de inundação em caso de rompimento.
"Conversei com várias pessoas que nasceram aqui e elas falaram que Macacos nunca inundou", relatou Fernanda, moradora da região desde 2017. Ela afirma que as enchentes foram ocasionadas por um muro construído pela Vale para conter os rejeitos de mineração e que está represando as águas da chuva.
Quem me impede de ir e vir não são as chuvas. É a Vale. É o risco de um rompimento, de um muro represando a água."
Fernanda Tuna, 39, professora
"A gente nunca foi informado da situação do muro que está transbordando de água de chuva, retendo toda a água e a gente nem sabe mais o que, se tem ferro ali também", contou. Um laudo sobre o muro, feito pela Vale e entregue em 2020 ao Ministério Público, trabalha com o nível máximo de precipitação de 0,14 mm³.
Ao UOL, a Vale disse que a barreira foi construída para garantir a segurança do processo de eliminação da B3/B4 e que a estrutura "apresenta condições normais de operação e permanece estável". Em nota, a mineradora disse que "o acúmulo da água retida na contenção, provocado pelas intensas chuvas na região, com volume aproximado de 565 mm somente neste sábado e domingo, não interferiu na sua estabilidade e função".
As enchentes passaram a engrossar uma lista de receios da moradora, que ouviu as sirenes da área tocarem quando a barragem passou ao nível máximo de risco, em 2019, dias após a tragédia de Brumadinho.
"Na época eu não podia escutar nem barulho de trovão, tive que tomar remédio para dormir, não conseguia dormir. Você fica desesperado o tempo todo, com medo daquilo romper, e as cenas de Brumadinho se repetirem", contou.
Num grupo de WhatsApp com a vizinhança — criado para a troca de comunicados oficiais —, a Vale ainda não se pronunciou sobre as chuvas, disse Fernanda. A moradora também reclamou da atuação da Prefeitura e da Defesa Civil, alegando que não houve grande empenho em verificar a situação das ruas.
"Precisamos entrar em grupos de moradores, esperar alguém passar por ali, tirar foto e avisar. Mas mesmo com a boa vontade das pessoas, ninguém ali é técnico", observou. Procuradas pelo UOL, a Prefeitura de Nova Lima e a Defesa Civil de MG não responderam até a publicação deste texto.
As inundações, deslizamentos de terra e incertezas diante de uma barragem de alto risco levaram Fernanda a cogitar um futuro em outro lugar.
"Estou considerando até me mudar. Não sei até que ponto o ser humano consegue viver nesse estado de incerteza."
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