O que é intolerância religiosa, quem sofre no Brasil e como identificar?
Uma onda crescente de ataques contra centros e casas de umbanda e candomblé e outras religiões de matriz africana foi registrada nos últimos anos. Só em 2021, de acordo com o MDH (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), foram 586 denúncias de intolerância religiosa, um aumento de quase 141% em relação ao ano anterior, com 243 denúncias.
Em São Paulo, segundo dados da SSP (Secretaria de Segurança Pública) obtidos pelo UOL por meio da Lei de Acesso à Informação, no ano passado foram mais de 15 mil denúncias de ataques. Já no Rio de Janeiro, um levantamento do ISP - RJ (Instituto de Segurança Pública do Rio) contabilizou cerca de 1.355 crimes em 2020.
O combate à intolerância religiosa no Brasil ganhou até uma data: dia 21 de janeiro —escolhida em 2007, em memória da Iyalorixá Gildásia dos Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, vítima de um ataque motivado por sua religião.
O crime aconteceu em 2000, no bairro de Itapuã, em Salvador (BA), dentro do terreiro de candomblé Ilê Axé Abassá de Ogum.
O que é intolerância religiosa?
A intolerância religiosa envolve o preconceito que gera discriminação, profanação, ofensas e agressões contra outras pessoas, por conta de suas crenças.
Sendo um país laico do ponto de vista jurídico, o Brasil respeita o que diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelecidos pela ONU e possui em sua Constituição Federal de 1988 o artigo 5º, que assegura a igualdade religiosa e laicidade do Estado Brasileiro.
Com isso, foi criada, em 1997, a lei nº 9.459, que prevê punição de um a três anos de reclusão e multa para quem praticar, induzir ou incitar crimes motivados por discriminação de raça, cor, etnia religião ou procedência nacional.
Como a intolerância religiosa acontece?
Ingrid Limeira, especialista em direito das diversidades e autora do livro "Da escravidão do corpo à escravidão da alma: Racismo e intolerância religiosa", explica que o crime se manifesta de diferentes formas no cotidiano.
"Alguém que não tolera a religião do outro pode ser violento por meio de palavras, partir para a agressão física e até levá-lo a morte. Outro exemplo de desrespeito são os ataques aos terreiros", diz.
Principais alvos
Dados divulgados pelo Disque 100 mostram que, no Brasil, a maior parte das denúncias feitas por vítimas de intolerância religiosa é registrada contra a umbanda e o candomblé.
De acordo com uma pesquisa feita pelo UOL, na qual foram ouvidos historiadores, sociólogos, pais de santo, padres e pastores evangélicos, os maiores alvos são mesmo as religiões de matriz africana —o que leva a crer que existe um preconceito estrutural, além de racismo e xenofobia nesses movimentos de ódio contra crenças africanas.
A xenofobia e o racismo têm sido vistos mais ativamente quando se fala em intolerância religiosa. Terreiros e centros de umbanda e candomblé são alvos mais constantes, além dos ataques contra muçulmanos, por exemplo.
A Casa de Umbanda Santa Bárbara e Pai João da Guiné foi invadida no ano passado em Sumaré (SP), por exemplo, e deixaram mensagens como "casa do diabo" e "pai de santo do diabo'". "Eu ainda perdi o emprego", disse Pai Wesley, que administra a casa. "Meu chefe, que é evangélico, me demitiu quando soube do caso."
Cláudia Ribeiro, mestre em história, explica que a origem da intolerância está na colonização do Brasil. Quando os povos africanos foram trazidos para cá e transformados em escravos, houve uma tentativa de catequização por parte da igreja católica.
"Ela acontecia para deslegitimar os elementos culturais que constituíam a identidade negra", diz. "Os negros eram 'batizados', recebiam nomes cristãos e lhes era negado o direito de professarem sua fé. Graças a esse processo histórico, o Brasil se transformou em um país preconceituoso", completa.
É por isso que crescemos com medo das 'macumbas' e dos 'trabalhos', ressalta ela. "Porque escutamos, desde cedo, nas escolas e dentro das casas, que aquilo não é de Deus —esse pensamento foi trazido pelos portugueses judaico-cristãos."
Ainda assim, durante seu discurso na Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), o presidente Jair Bolsonaro pediu o combate o que ele chamou de "cristofobia" (aversão a Cristo e ao cristianismo como um todo).
Apesar da crença de que existe um ataque às religiões cristãs, como a religião evangélica, a fala do presidente é equivocada quando se mensura os ataques sofridos em comparação com outras religiões.
É neste contexto que o vídeo divulgado pela primeira-dama Michelle Bolsonaro em seu Instagram foi acusado de intolerância religiosa. Publicado originalmente pela vereadora Sonaira Fernandes (PL - SP), com a legenda: "Lula entregou sua alma para vencer essa eleição", o post mostra o ex-presidente e atual candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com uma mãe de santo.
Ele toma um "banho de pipoca", uma prática comum na umbanda como forma de limpeza e proteção.
O pastor e deputado federal Marco Feliciano também usou as redes sociais para atacar Lula e compartilhou o mesmo vídeo com a legenda: "Crente que vota nesse homem apóstata da fé! É fazer pacto com o maligno!", gerando uma série de denúncias e notas de repúdio.
Além disso, apesar de ser uma violência recorrente nos dias de hoje, a intolerância religiosa existe desde milênios atrás. Quando o cristianismo se tornou a religião oficial do império romano, por volta do século 4, houve uma perseguição às crenças pagãs, que resultou na proibição de outras práticas e deu origem a uma das fases mais sangrentas da Igreja Católica.
No final do século 14, a caça às bruxas e à religião pagã levou à morte centenas de milhares de pessoas por conta de suas crenças, inclusive curandeiros e pessoas adeptas às medicinas naturais, denunciadas por médicos que tentavam implementar a medicina científica. (Com reportagem de Ana Bardella)
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