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Professora admite em áudio maus-tratos a aluno autista: 'Não me mata, prof'

Kyane Sutelo

Colaboração para o UOL, em Porto Alegre

17/10/2022 22h55Atualizada em 18/10/2022 14h53

"Mãe, ela queria matar meu coração". É assim que um menino de 6 anos, diagnosticado com transtorno do espectro do autista, se refere ao que vivenciou com sua professora, conforme a mãe do menino contou ao UOL. O caso ocorreu no Colégio Romano Senhor Bom Jesus, em Porto Alegre, que demitiu a docente. Apesar de gravação em que ela admite ação contra o garoto, a defesa dela nega ter havido agressão e que ela apenas se defendeu das ações da criança.

Segundo a Polícia Civil, Vanessa Maciel Pereira foi indiciada por "praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência" e por lesão corporal. De acordo com a responsável pela delegacia de Combate à Intolerância de Porto Alegre, Andrea Mattos, a investigação foi concluída com cerca de 15 depoimentos, além de documentos, e já foi remetida ao Poder Judiciário.

O caso veio a público após a própria professora relatar o episódio envolvendo o estudante em um áudio enviado por aplicativo de mensagem: "Não aguento mais a cara daquele inferno daquele guri. Eu peguei a toalhinha dele, cada vez que ele vinha para cima de mim me cuspir, eu enfiava aquele pano na cara dele". Disse a profissional em um trecho. E completou: "Gurias, ele se jogava no chão e dizia 'não me mata, profe, não me mata'".

No áudio, a professora diz que "se descontrolou". "Ele surtou hoje, gurias, só porque eu falei que o casaco não era dele, era de um outro colega; nós tava voltando do pátio, guardando os casacos na mochila, e ele veio com tudo para cima de mim, deu um puxão na minha roupa, cuspiu horrores, que vocês não têm noção. Aí, eu tinha pego antes a toalhinha de lanche dele e a lancheira, sabe o que que eu fiz, gurias? Eu me descontrolei de um jeito assim, ó, não é nem descontrole, tá? É que eu já tô p***, já, não aguento mais a cara daquele inferno daquele guri".

A professora foi demitida da instituição, mas a mãe do menino não se conforma com o desfecho do caso. Ela considera a pena branda e acredita que o indiciamento deveria ser por tentativa de homicídio. "Estou me sentindo injustiçada. Ela tem que pagar por isso", desabafa a mãe do menor.

Para a delegada do caso, "não teve dolo [intenção] de matar", apesar de a atitude ter sido considerada criminosa no inquérito.

mãe - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

"Ele desenhava os Minions tristes", diz mãe

O boletim de ocorrência policial do caso foi registrado pela escola no dia 23 de agosto. Conforme o documento, o fato teria ocorrido no dia 11 do mesmo mês. A professora teria sido demitida no dia seguinte da agressão.

A mãe do aluno afirma que a escola tentou esconder dela a gravidade da situação e que desconhecia o áudio até esta semana, quando decidiu tirar o filho da instituição.

"Eles me chamaram três vezes lá, para assinar uma ata e em nenhum momento me falaram desse áudio". No boletim de ocorrência registrado pela mãe, consta que comunicaram a responsável pelo menino "sem contar detalhes".

A mãe do menor conta que estranhava as reclamações sobre a atitude do filho com essa professora, já que ele tinha um bom relacionamento com os demais profissionais do colégio.

"A escola me mandava bilhete dizendo que ele ficava agressivo com essa professora e eu conversava, não entendia", explica a mãe.

Segundo ela, os desenhos do filho eram um pedido de socorro. "A toalhinha dele é de Minions e ele desenhava os Minions tristes, chorando. Ele estava mostrando ali o que estava acontecendo e ninguém viu", lamenta.

Protesto

Pelas redes sociais, o colégio divulgou uma nota sobre o caso. "Fomos rápidos, agimos com precisão e comunicamos os órgãos competentes". Ainda segundo a publicação, o colégio afirma que "foram prestadas toda assistência e apoio ao aluno e sua família".

Hoje, a mãe da criança esteve no colégio. Aos gritos de "justiça", ela levou o paninho do filho e questionou o motivo de não ter sido informada antes sobre os detalhes. Após reunião com a direção do colégio, ela ainda se mostrou insatisfeita. "Meu filho não volta mais para essa escola".

Ao UOL, a mulher disse que não pretende acionar a instituição de ensino judicialmente, apenas quer que a indiciada seja presa.

A mãe ainda relatou que, na frente do colégio, outros pais e mães a abraçaram em solidariedade. "Será uma vitória por toda a causa autista. Para saberem que não se trata uma criança assim", defendeu.

O UOL entrou em contato com o Colégio Romano Senhor Bom Jesus, que enviou uma nota nesta terça-feira: "Assim que as notícias do fato chegaram até nós, fomos rápidos, agimos com precisão e comunicamos os órgãos competentes. Ouvimos no dia todos os envolvidos, no dia seguinte rescindimos o contrato com a professora, reunimos as provas e encaminhamos a delegacia e chamamos a família para relatar. A delegada ficou com todas as provas e começou a ouvir as testemunhas."

A escola ainda afirmou que busca "sempre a qualificação dos nossos professores, com formações contínuas, que são previstas em nossos planejamentos, desenvolvendo não só a área pedagógica, mas também a emocional".

O que diz o advogado da professora

O UOL procurou a professora indiciada, que não quis conceder entrevista. Em nota, o advogado da docente, Carlo Velho Massi, afirma que "em mais de 20 anos de docência, Vanessa lidou com diversos alunos especiais e jamais praticou qualquer ato de discriminação".

O texto ainda diz que "em momento algum, a professora agrediu o aluno; apenas - e lamentavelmente - precisou defender-se sozinha, de forma proporcional e com os meios disponíveis, de mais um ataque, sem qualquer apoio de sua supervisão".

Confira a íntegra da nota: "A Defesa da Professora Vanessa Maciel Pereira manifesta que, desde que tomou ciência da existência de uma investigação sobre os fatos, passou a colaborar ativamente com a delegacia responsável, fornecendo diversas provas que demonstram a inconsistência das acusações e requerendo diligências imprescindíveis à correta compreensão do ocorrido. Em mais de 20 anos de docência, Vanessa lidou com diversos alunos especiais e jamais praticou qualquer ato de discriminação, contando com o reconhecimento das escolas pelas quais passou e de muitos pais. Na realidade, não havia uma orientação clara e adequada do colégio em questão sobre como conter as crises do aluno, que frequentemente eram minimizadas pela direção para sua família. Certo é que a professora solicitou auxílio inúmeras vezes e viu-se obrigada a permanecer lidando com a situação para manter seu emprego, mesmo sem possuir uma formação específica para atendimento educacional especializado. Porém, em momento algum, a professora agrediu o aluno; apenas - e lamentavelmente - precisou defender-se sozinha, de forma proporcional e com os meios disponíveis, de mais um ataque, sem qualquer apoio de sua supervisão. O áudio encaminhado pela professora em grupo privado de colegas foi um desabafo pelo desprezo com que vinha sendo tratada há vários meses e apenas confirma que agiu em legítima defesa. Vanessa e sua Defesa técnica seguem à disposição das autoridades para esclarecer e trazer à tona a verdade, na medida que, até o momento, houve uma tentativa de tirar o foco da omissão do colégio diante dos pedidos de socorro da professora".