Topo

Esse conteúdo é antigo

'É chocante quando colocamos rostos nas vítimas, quase todos se conhecem'

Maurício Businari

Colaboração para o UOL, em Santos

23/02/2023 04h00

"É muito chocante quando você começa a colocar rostos nos números estimados de vítimas. É um amigo, um parente, um conhecido. A gente fica atordoada", a declaração é da militante do movimento negro e LGBTQIA+ e vereadora suplente da Câmara de São Sebastião, Pauleteh Araújo, 27.

Desde domingo, Pauleteh vem trabalhando sem descanso na busca de doações e no oferecimento de ajuda humanitária às vítimas das chuvas que castigaram o litoral norte de São Paulo.

Conhecida na cidade como vendedora ambulante de tapioca, Pauleteh mora no bairro de Juquehy e também teve a casa alagada no final de semana. O irmão, que mora com a família em outro imóvel, perdeu tudo e ficou desabrigado com a tragédia.

Natural de Salvador, na Bahia, ela mora na cidade há muitos anos. Em maio de 2020, se tornou a primeira mulher trans a assumir o cargo de vereador na Câmara de São Sebastião, em maio do ano passado, ela ocupou o cargo de suplente em substituição ao vereador Daniel Simões, que havia tirado uma licença por 30 dias.

Apesar de não ter sofrido prejuízos materiais com os alagamentos, ela diz que não consegue dormir desde então, preocupada com a situação dos moradores das regiões de risco da cidade. "São Sebastião é uma cidade pequena, quase todos se conhecem", afirmou ao UOL.

Em suas redes sociais, Pauleteh mobiliza, de forma voluntária, desde empresários dispostos a fazer doações a pescadores empenhados em se voluntariar na entrega. Em diversos vídeos postados nas redes, ela revela um pouco das histórias de dor e sofrimentos dos moradores da cidade.

Em outros, mostra como as pessoas da região e de outras partes do Brasil estão unindo esforços para auxiliar nas buscas pelos sobreviventes e prestar ajuda para quem precisa.

"Nunca vimos um volume de chuvas como as que foram registradas no final de semana aqui no litoral norte. O cenário é desolador. Todos os dias mais corpos são encontrados soterrados na lama. Hoje mesmo encontraram quatro. É muita dor e sofrimento".

Pauleteh participa pessoalmente do recebimento e entrega das doações e também atua nas comunidades mais afetadas, como em Barra do Sahy, buscando ajudar os moradores mais necessitados e fazendo pontes com as autoridades públicas.

Segundo ela, a Costa Sul do litoral norte foi a mais afetada. "Há centenas de casas que vieram abaixo, um número muito grande de pessoas ainda soterradas. Há vilas inteiras sendo interditadas, mesmo que as casas ainda estejam de pé, por causa dos riscos de novos deslizamentos. São pessoas que perderam tudo e muitas nem sabem dizer do que precisam com mais urgência", explica.

Pauleteh afirma que a ajuda aos atingidos não se iniciou por iniciativa do poder público, mas a partir do desejo dos próprios integrantes das comunidades e bairros de São Sebastião em ajudar. Muitos desabrigados e desalojados foram abrigados por vizinhos e até desconhecidos, que ofereceram suas casas para a permanência de quem havia perdido tudo. Igrejas também ofereceram suas sedes para abrigar os sobreviventes.

"Mesmo após quatro anos muito difíceis, de muito ódio na sociedade, a solidariedade dos brasileiros resiste. É ela que está mantendo ainda o que resta de pé", disse.

Área de risco não é escolha

Para Pauleteh, a especulação imobiliária é um dos motivos para as pessoas morarem em áreas de risco, como as encostas dos morros.

"Em São Sebastião, por exemplo, a especulação imobiliária torna os preços muito altos para aquisição ou locação de imóveis nas áreas nobres, mais perto da praia. Muitas pessoas vêm à cidade para trabalhar. Chegando aqui, se deparam com a realidade dos preços da moradia", explica.

"No final, o que sobra para elas são imóveis insalubres, em áreas de risco, do outro lado da rodovia, no chamado 'sertão', onde os aluguéis também já não são tão acessíveis para a classe trabalhadora. Viver na área de risco, então, se torna uma necessidade e não uma escolha".