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Mãe de santo cultua Belzebu e isso não tem nada de 'satânico'; entenda

Do UOL, em São Paulo*

24/03/2023 09h28Atualizada em 06/06/2023 09h19

Uma mãe de santo virou assunto essa semana depois de instalar uma estátua de Belzebu na fachada de sua casa, em Alvorada (RS). Entre as críticas recebidas por mãe Michelly da Cigana estaria a de que ela desonra religiões afro-brasileiras cultuando um suposto demônio.

Mas a crença da mulher não tem nada de satânica, explica o pai de santo Sérgio Maresca, que é sacerdote da umbanda mas também pratica a quimbanda — que tem a entidade Belzebu como uma de suas figuras sagradas.

Ele argumenta que o preconceito com Belzebu é fruto da demonização, principalmente cristã, sobre outros cultos.

"Belzebu é só um, mas a leitura cristã pegou as religiões ditas pagãs, que cultuavam a natureza e diversas divindades que já existiam, e colocaram essas imagens e culturas como sendo do diabo. Infelizmente, outras fés cresceram investindo no medo em torno delas. Colocaram o nome de diabo em uma entidade de uma cultura que já existia. É uma figura precedente a tudo isso."

Diferenças entre umbanda e quimbanda

  • Na umbanda, o sacerdote é a mãe ou pai de santo; na quimbanda, ele é chamado de Táta; se decidir praticar a quimbanda, o título umbandista não vale para o outro culto.
  • Os terreiros de umbanda são abertos a quem quiser ir; já na quimbanda, os cultos são exclusivos para iniciados.
  • Na umbanda, os espíritos incorporados por médiuns tem o objetivo de ajudar na evolução dos fiéis, enquanto na quimbanda querem "aproveitar": "muitos pedem um charuto, uma bebida, é como se ele tivessem a oportunidade de estar aqui", explica pai Sergio.
  • A diferença acontece porque na quimbanda os espíritos auxiliam os fiéis por meio de um oráculo, apresentado no dia da iniciação dos adeptos.
  • As duas cultuam imagens, mas na umbanda os altares variam de casa para casa, incluindo até santas católicas, incorporadas na religião para que a perseguição fosse menor no início dos anos 1990.
  • Já os quimbandistas têm exus e as pombagiras; elas, segundo pai Sérgio, são em sua maioria figuras que nasceram na Europa e viveram como feiticeiras, bruxas ou até parteiras, perseguidas por ter um conhecimento que agredia a cultura dominante à época.
  • Os encontros da umbanda são essenciais aos fiéis, já que toda comunicação com as entidades acontece neles; na quimbanda, praticantes com mais conhecimento podem obter auxílio espiritual pelo oráculo, sem precisar ir a todos os cultos.

Semelhanças

As duas vertentes afro-brasileiras não têm um livro sagrado. A oralidade é a principal ferramenta para quem deseja entender suas práticas. Por isso mesmo, explica pai Sérgio, é importante que os fiéis frequentem as casas de religião.

"No cristianismo, a Bíblia traz regras para ser cristão. Nesses cultos não tem isso, tem apenas as regras que são passadas por cada pai de santo e Táta, com pequenas variações, na prática em cada casa, dependendo da linha espiritual. Mas na umbanda elas acontecem dentro de uma luz maior, que é Olorum, nosso Deus", explica.

E qual delas faz amarrações?

Pai Sérgio destaca que os trabalhos demonizados por muitas outras crenças são típicas da quimbanda. Ele afirma que ritos do tipo são feitos apenas com a orientação do oráculo e mantendo o livre arbítrio de cada espírito.

"Muitas coisas são colocadas de forma pejorativa: 'Ah, vocês fazem amarração na quimbanda?' Se o seu espírito quiser, porque não? É seu espírito que está pedindo. 'Mas, você faz uma pessoa ficar comigo com essa amarração?'. Ela tem o espírito dela. Se ele entender que precisa receber essa amarração, é um acordo espiritual. A gente faz com que sua força atue na força de terceiros, mas a pessoa pode se proteger", explica o sacerdote.

Como se iniciar no culto

Quem quiser se iniciar na quimbanda deve procurar um Táta ou algum iniciado que possa jogar o oráculo. Ele vai indicar qual o espírito de quem está se iniciando — em geral, um exu, uma pombagira ou um exu menor.

Mas existem pessoas que são negadas pelo oráculo, segundo pai Sergio, "por motivos que só os espíritos podem explicar". Assim como acontece na umbanda, a quimbanda tem base africana, mas também se misturou com a cultura brasileira, com a prática variando entre templos.

Quando você é iniciado, você recebe um oráculo e aprende a fazer a leitura para saber o que seu espírito quer. A gente faz um assentamento, que o espírito passa pelo oráculo, para que a energia dele fique assentada e você possa cultuá-lo da melhor forma. Podem ser ervas, objetos, qualquer coisa que ele precise para ficar fortalecido e nos ajudar. No caso da mãe de santo, ele fica no túmulo de Belzebu."

E como quimbanda e umbanda convivem?

Muitos adeptos da quimbanda foram antes ao templo de outra religião afro-brasileiro. Pai Sergio afirma que a introdução ao mundo da umbanda ou do candomblé pode ajudar a ouvir os chamados para o outro culto.

"É nosso espírito que acaba nos levando, para cultuarmos ele de uma forte mais forte e mais poderosa. Mas mesmo entrando na quimbanda, é importante que o iniciado não abandone o culto inicial, se tinha algum, porque é ele o responsável pela mudança que sofremos", explica pai Sérgio.

Por isso mesmo é perfeitamente possível que a mãe de santo que tem o Belzebu no vidro tenha uma casa de umbanda e um templo de quimbanda juntos. O túmulo para o Exu também: se o espírito dela pediu, qual o problema? É um culto de honra aos ancestrais da forma mais amorosa e mais cuidadosa possível, para termos o melhor destino que podemos."

* As informações foram fornecidas por Pai Sérgio Maresca, sacerdote da Tenda Pai Tomé da Guiné, que também comanda o Templo do João Caveira, onde pratica o quimbandismo sob os ensinamentos de Táta Kamulepambo, da Casa de Marabô.