Louvor e bate-cabeça: igreja prega o evangelho ao som de heavy metal em SP
As paredes pretas e o letreiro indicando um "ministério underground" podem enganar quem transita pela rua Marquês de Olinda, no Alto do Ipiranga, na zona sul de São Paulo. A estrutura que se assemelha a um bar de rock é, na verdade, uma igreja evangélica em que a palavra de Deus é professada em meio às guitarras.
A Crash Church, algo como "igreja do estrondo", em tradução livre, foi fundada oficialmente em 2006. "Tem vizinho que pensa até hoje que é bar, porque é tudo preto, com luzes e sempre tem aquela galera mais 'diferente' na porta", diz o pastor Antônio Carlos Batista, criador do templo.
Até ocupar a casa no Ipiranga, os membros da igreja viveram uma história que remonta aos primeiros shows da banda de death metal cristã Antidemon, liderada por Batista. O grupo foi formado em 1994.
Quando o Antidemon tocava, as pessoas começaram a seguir a banda e se tornarem amigos mesmo. No domingo, a banda sempre ia para a igreja, para o culto normal em igrejas evangélicas comuns, mas a galera dos shows queria acompanhar. Comecei a levá-los para a igreja que eu frequentava, mas tinha um preconceito porque o estilo deles destoava: eram punks com moicano, gente que usava capas tipo Drácula, com tatuagens... E o pessoal começou a ficar assustado. Chegou a um ponto que nos disseram que não éramos mais bem-vindos.
Nascido em um lar evangélico, a própria história de Batista se confunde com a da Crash Church. Filho e neto de pastores, ele frequentava cultos desde criança.
"Só que nunca me identifiquei. Tudo era feito com muita tradição, muitos dogmas, achava uma linguagem longe da realidade dos jovens. Na escola da igreja, eu era o terror dos professores porque questionava demais e acabava, de certa forma, sendo a 'má influência'. Sempre entendi que Deus era um ser que não é manipulador, não se compra ou se vende e sempre achei ruim a situação da igreja sempre estar envolvida com corrupção, política."
No início dos anos 1990, Batista começou a ter sinais de que o seu futuro na igreja evangélica sofreria uma mudança radical.
Na época, não conhecia o heavy metal porque, na igreja que eu pertencia, não podia nem ter televisão em casa. Só que, em determinado momento, eu comecei a ouvir riffs de guitarra na minha mente. Algo que nunca tinha visto antes, só conhecia música gospel. Comecei a gravá-los, durante meses, até que passei na Galeria do Rock, procurando um lugar para tirar xerox, e de repente comecei a ouvir aquelas músicas nas lojas. Fiquei impactado.
Em contato com o novo estilo de música, o jovem começou a querer entender ainda mais sobre o universo do rock. No caminho, fez amigos que também tinham desejo de fazer música religiosa e, assim, nasceu a Antidemon, que hoje está prestes a completar 30 anos.
As apresentações começaram em bares e, com pouco tempo, mais pessoas se somaram ao grupo. Foi a partir daí que as reuniões religiosas surgiram, ocupando estúdios de ensaio, um salão e, posteriormente, o edifício no Ipiranga. "Foi tudo bem espontâneo, acontecendo da necessidade da gente mesmo."
Louvor sob solos de guitarra
Cultos com headbangers (ou metaleiros, aqueles que batem cabeça ao som do heavy metal) não são incomuns na Crash Church. O rock é essencial para passar a palavra de Deus, segundo Batista — e é o que atrai novos fiéis.
A maioria vem pela música, principalmente pelos nossos shows. Tem punk, gótico, death metal, e assim por diante. Tem muitas pessoas que só porque gostam de heavy metal são expulsas de suas igrejas. Ou porque tem uma orientação sexual que não é aceita, por exemplo. Aqui, colocamos o amor em primeiro lugar. Temos que aceitar as pessoas como elas são e convivermos juntos."
O envolvimento rock com o evangelho, no entanto, não agradou a muitas pessoas. "Nos primeiros anos foi um impacto. Algumas pessoas vinham pra cima com violência. Fomos ameaçados com gente dizendo que éramos do mal, que não tinha nada a ver com Deus. Quando começamos com a Crash Church, teve um abaixo-assinado para que fechássemos, mesmo que tivéssemos os documentos para funcionar."
Tem oposição dos dois lados. Os evangélicos não nos consideram e algumas pessoas do heavy metal não nos aceitam. A sociedade não está preparada para ver isso do jeito que estamos fazendo. Aos poucos a gente vai seguindo. Pastor Batista.
A psicóloga e cantora Melissa Ailyria, 30, é uma das fiéis que vê dificuldade de aceitação tanto dos evangélicos quanto dos roqueiros.
"Já sofri preconceito de pessoas religiosas, de igrejas mais tradicionais, e de quem não frequenta igreja nenhuma. A maior parte é dos religiosos, porque eles veem a nossa igreja como algo que não é. O pastor é tatuado, cabeludo, então a pessoa vê isso como se não fosse de Deus. Muitas têm preconceito por não conhecer o ministério. Tenho amigos que, depois que conheceram, acharam legal", disse Melissa.
A psicóloga também nasceu em um lar evangélico e começou a frequentar os cultos da Crash Church pelos shows que a igreja fazia.
"Ela se diferencia porque não tem regras humanas impondo certos dogmas religiosos como, por exemplo, não poder usar calça, não poder ter piercing ou tatuagem... São coisas que não se fala na Bíblia, mas muitas religiões criam essas regras e eu não me identifico com isso. O diferencial é você estar em um ambiente que sente a presença de Deus e, ao mesmo tempo, consegue curtir o som que gosta, sem ser julgado por isso. A Crash me ensinou a ser uma pessoa livre, a entender que as coisas de Deus são livres e não preciso estar presa a várias regras."
Para a administradora Marta Moura, 51, a aceitação da Crash foi um dos motivos que fez ela ficar na igreja. "Não tem preconceito do meu estilo, cabelo colorido, tatuagem, piercing e posso continuar falando da essência da palavra de Deus. Infelizmente, muitos cristãos nos rejeitam por causa do nosso visual".
"O rock é uma música boa, agradável e tendo uma vertente onde pode se falar da fé cristã, onde pode se falar de Jesus é muito mais interessante."
Foi também na igreja que o almoxarife Flávio Souza, 35, encontrou acalanto. Ele havia levado um bolo de alguns amigos quando estava a caminho de uma festa. Sozinho à noite e sem conseguir voltar para casa por depender do transporte público, ele decidiu seguir para um encontro da Crash Church, quando eles ainda aconteciam em um salão na Barra Funda.
"Nesse período que eu estava desviado. Fui para lá todo torto, bêbado. E desde então se passaram 13 anos. O que achei diferente é que eles fazem a gente se sentir útil. Você não fica lá só ouvindo alguém falar sobre dinheiro, dízimo, vendendo boa imagem de um político. Você tem responsabilidades e todo mundo te dá um suporte."
Flávio credita a mudança de comportamento ao longo dos anos à igreja.
"Com a Crash, percebi que poderia curtir o role do rock e do metal com bandas cristãs, sem precisar consumir álcool ou drogas para complementar minha diversão. Música é música. Posso usar o rock para professar a minha fé. A música tem poder de transformar as pessoas. Acho que é importante essa relação do rock com a religião porque a música nada mais é que uma forma de expressão."
O metal cristão
Se pode parecer estranho para alguns ou até condenável para quem defende o metal ou o rock, em geral, como gêneros de protesto, o metal cristão tem um espaço desde cedo na música pesada. O estilo ganhou até nome próprio: white metal.
Nos anos 1970, grupos como Resurrection Band e Barnabas já falam sobre suas crenças — indo na contramão de nomes como Black Sabbath, que apostava em imagens mais obscuras para chamar atenção. Nos anos 1980, o Stryper despontou como uma das bandas mais famosas a usar a temática cristã, que hoje ainda é representada por grupos como P.O.D., Underoath e, entre os brasileiros, Eterna e Oficina G3.
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