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Lavagem e lanterna em exame íntimo: mulheres são humilhadas para ver presos

Mulheres fazem fila para visitar familiares presos no Centro de Detenção Provisória de Mauá - Divulgação Defensoria Pública de São Paulo
Mulheres fazem fila para visitar familiares presos no Centro de Detenção Provisória de Mauá Imagem: Divulgação Defensoria Pública de São Paulo

Do UOL, em São Paulo

04/06/2023 04h00

Apesar da proibição das revistas íntimas em São Paulo, mulheres relatam terem sido submetidas a procedimentos invasivos e humilhantes para provar que não carregavam drogas no corpo. Mesmo assim, em muitos casos, não conseguiram autorização para visitar familiares nas unidades prisionais.

Lavagem intestinal e sangramento

Em um pronto-socorro público de Cerqueira César, no interior, Mariana passou por "exames de toque anal extremamente invasivos, lavagem intestinal, além da ingestão de medicamento que causou náusea e vômito", segundo a Defensoria Pública. Os nomes das entrevistadas foram trocados para preservar a identidade.

A mulher foi levada até a unidade de saúde em 11 de fevereiro, depois que o scanner corporal da penitenciária onde o marido está preso apontou o que os agentes chamaram de "imagem suspeita". Após os exames, nada foi encontrado.

Mariana diz ter apresentado um intenso sangramento logo em seguida. Ela procurou, então, outro pronto-socorro — que constatou uma inflamação.

Mesmo depois dos exames, a mulher não conseguiu visitar o marido. Foi informada que seria instaurado um procedimento administrativo e as visitas estariam suspensas até a conclusão do procedimento.

No dia 14 de fevereiro, o juiz Fábio Fernandes Lima, Departamento Estadual de Execução Criminal de Bauru, solicitou detalhamento da situação à direção da Penitenciária de Cerqueira César. A diretoria da unidade prisional reafirmou que "foi constatada anormalidade na imagem do aparelho."

Todo dia quando me deito vem aquela cena na minha cabeça. Foi uma covardia da parte deles.
Mariana, mulher submetida a exames invasivos

Papanicolau com lanterna

Tatiana diz que teve que passar três vezes pelo scanner corporal na Penitenciária de Irapuru, também no interior, em junho do ano passado. Foi informada que teria algo a "ser retirado" de seu corpo.

No Hospital de Junqueirópolis, foi submetida a uma radiografia — que não localizou objeto ilícito em seu corpo.

O diretor da unidade, então, pediu que ela realizasse um exame de toque, de acordo com a Defensoria Pública de São Paulo. Tatiane relata que, durante o papanicolau, o médico solicitou que a agente olhasse sua vagina com uma lanterna.

Após o exame, de volta à unidade prisional, Tatiane não foi autorizada a entrar. Ela diz ainda que tentou obter notícias do companheiro por e-mail, mas não conseguiu.

Dois meses depois, em agosto, ao tentar retornar à unidade, desta vez com o filho de um ano, Tatiana afirma que teve novamente de passar três vezes por um scanner. Após o bebê ter sido revistado, ela foi informada que teria de ir ao pronto-socorro outra vez.

Ela se negou a ir ao pronto-socorro por temer novo constrangimento — desta vez, relativo ao filho. Por disso, foi orientada a assinar um termo de suspensão de visitas por seis meses.

A Defensoria Pública de São Paulo pediu providências. O coordenador Regional da Execução Penal e 9º Defensor Público da Regional de Presidente Prudente (SP), Gustavo Picchi, cobrou esclarecimentos.

Dupla violação: scanners e exames

As revistas íntimas são proibidas desde 2014 em São Paulo. De acordo com a lei, são consideradas revistas íntimas todo procedimento que obrigue o visitante de uma unidade prisional a tirar a roupa, fazer agachamentos ou dar saltos e se submeter a exames clínicos invasivos.

A lei prevê também que, na hipótese de um visitante estar com drogas ou objetos ilícitos, ele deverá ser submetido a uma nova revista. Nessa etapa, deve ser utilizado um equipamento diferente do primeiro.

Os scanners corporais não são utilizados em todas as unidades prisionais do país. "Não existe uma lei federal que trace uma normativa nacional", afirma Janine Salles de Carvalho, secretária-executiva da Rede Justiça Criminal.

De acordo com uma pesquisa realizada pela Rede Justiça Criminal, em 2021, 48,7% dos familiares de pessoas presas afirmaram que os procedimentos de revista íntima não foram interrompidos após a instalação dos scanners. O levantamento mostra também que 41,2% afirmaram terem passado pela revista íntima após o procedimento tecnológico.

Uma ação que avalia proibição ou não da realização de revistas íntimas vexatórias em visitantes de presídios começou a ser julgada no plenário virtual do STF. O ministro Gilmar Mendes pediu destaque e mandou para julgamento presencial na Corte. Não há prazo para isso ainda.

Os abusos ocorrem submetendo familiares diversas vezes pelo equipamento, desconfiando das que usam DIU. Algumas visitas ficam horas sem comer para que não tenham problemas no scanner. Há ainda as humilhações verbais, que deviam ser entendidas como vexatórias -- mas não são.
Viviane Balbuglio, advogada e colaboradora da Amparar.

O que a SAP e as direções dos presídios dizem

Ao UOL, a SAP (Secretaria Estadual de Administração Penitenciária) disse que "foram identificadas alterações nas imagens na análise do scanner corporal das duas visitantes" citadas na reportagem.

A pasta alega que as mulheres "optaram por ir até o hospital para realização de exames complementares". "Os exames referidos pelas visitantes não são realizados dentro das unidades prisionais."

Em relação ao caso da mulher submetida à lavagem intestinal, a SAP informou que a suspensão da visita ocorreu para "esclarecer o ocorrido".

Segundo a secretaria, na Santa Casa de Cerqueira César, a médica plantonista teria encontrado "algo de anormal". Contudo, a médica informou que usou "todos os meios possíveis e disponíveis na unidade de saúde, mas não foi possível concretamente apontar anormalidade no corpo da visitante." Ao final do processo, a pasta informou que houve a liberação da visita.

Em relação ao caso da visitante submetida a um exame ginecológico com lanterna, a direção do presídio de Irapuru negou a realização de exame invasivo e do equipamento com luz.

A Coordenadoria de Unidades Prisionais da Região Oeste — à qual a penitenciária faz parte — afirma que "os visitantes são submetidos aos procedimentos de revista através do scanner corporal". Entretanto, "em algumas ocasiões a imagem do corpo do visitante, apresentada na tela do monitor do aparelho, revela-se distorcida podendo ser confundida com a presença de eventuais objetos ilícitos".

Em resposta à Justiça, a direção da unidade prisional diz que "eventualmente, fezes e gases intestinais" podem apresentar alterações na imagem "sendo necessário o procedimento de revista novamente". E que "em nenhum momento foi afirmado que se tratava de objeto ilícito, apenas que diante daquelas imagens, seria fundamental a realização de exame raio-X".

A SAP disse ainda não tolerar desvios de conduta praticados por servidores. "Eventuais casos de irregularidades são prontamente investigados, com punições rigorosas aos responsáveis, de acordo com a legislação vigente."