Políticas para a 'cracolândia' falham, e região vê banalização da violência
Autoridades, entidades de direitos humanos e organizações da sociedade civil consideram como "desastrosas" as ações de combate ao comércio de drogas na "cracolândia", no centro de São Paulo.
O que aconteceu
Pelo menos três atropelamentos na "cracolândia" deixaram frequentadores gravemente feridos nos últimos meses. No domingo passado (22), um homem atropelou 16 pessoas — o boletim de ocorrência diz que ele estava com a mulher e os filhos no carro e teria tentado fugir de um assalto.
As consequências dessas políticas têm sido a banalização das mortes, a ocorrência de atropelamentos e a escalada da violência, dizem especialistas.
O agravamento das tensões na região do fluxo de frequentadores deve esquentar o debate eleitoral. O atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), patrocinou políticas de dispersão de usuários, ao contrário do que defende seu maior opositor, o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL), defensor de políticas de redução de danos.
A prefeitura defendeu, em nota, o Programa Redenção, em vigor atualmente, e diz que por meio dele utiliza "estratégias integradas entre saúde, assistência social, segurança urbana, requalificação profissional e gestão urbana para elaborar respostas".
No governo Nunes, a "cracolândia" migrou três vezes de lugar. Atualmente ela está localizada entre as ruas dos Protestantes e General Osório. A reportagem pede uma entrevista para a prefeitura sobre o tema desde quarta-feira (25).
"O melhor trabalho é aquele que acredita na perspectiva e na autonomia das pessoas", diz Benedito Mariano, ex-secretário municipal de Segurança Urbana em gestões petistas e ex-coordenador do programa De Braços Abertos (de acolhimento e redução de danos na cracolândia). Ele foi convidado a integrar a equipe de pré-campanha de Boulos.
O sufocamento do tráfico na região depende da inteligência da polícia, diz. "A articulação das polícias falhou, uma vez que a droga continua chegando", diz Mariano, que também foi ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo nos governos Covas, Alckmin e Doria.
A prefeitura disse que "a afirmação de que o Programa Redenção teria abandonado a redução de danos é equivocada". No Programa Redenção, as equipes multiprofissionais definem o tratamento de saúde de cada atendido de forma individualizada, estabelecendo o Projeto Terapêutico Singular.
O governo estadual afirma que "desde o início da atual gestão, tem trabalhado ativamente de forma multisecretarial e em parceria com a prefeitura da capital para combater o tráfico de drogas", "asfixiar" a criminalidade, "reduzir as cenas abertas de uso [de drogas] e oferecer uma saída viável aos dependentes". Segundo o governo, houve queda nos roubos e furtos na região após duas operações.
Mortes naturalizadas
Atropelamentos de frequentadores do "fluxo" são resultado da naturalização das mortes naquela região, afirma Aluízio Marino, coordenador do LabCidade e pós-doutorando da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Roubos em comércios e ônibus são consequências dessa escolha política, diz Marino. Ele avalia que, além da política de "guerra às drogas", há uma "guerra semântica". Essas guerras urbanas seriam utilizadas para mobilizar discursos políticos.
É uma política pública pautada na destruição desses lugares, que não atende as pessoas que ali habitam, mas parte do pressuposto de que é um território com uma política de morte.
Aluízio Marino, coordenador do LabCidade
"Temos visto uma escalada de violência", afirma Cristiano Maronna, advogado e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. Em abril, um homem de 40 anos foi atropelado no cruzamento da rua Conselheiro Nébias com a rua dos Gusmões. Em junho, um carro conduzido por um motorista de aplicativo foi atacado com um pedaço de madeira em uma das ruas da região.
'Barril de pólvora'
A aposta na dispersão de pessoas tem transformando o território num "barril de pólvora", afirma Marino. "Todos sofrem com a política de repressão. Quem mora ali sofre com o barulho, a sujeira e a circulação comprometida. O cliente de um comércio tem medo, quem circula tem medo. Ou mudamos os caminhos ou vamos continuar com essa guerra".
O histórico de violação de direitos no chamado fluxo não é recente. "É como se essas pessoas não merecessem ter os direitos respeitados", diz Maronna, da OAB. O advogado avalia que a Operação Caronte —montada em 2021 para desarticular o tráfico— fracassou. "Hoje vivemos mais um capítulo de violação de direitos."
É evidente que ser assaltado é desagradável, mas existem assaltos em todos os lugares da cidade e não vemos pessoas atropelando outras. É um território onde a violação de direitos parece ser permitida. Isso estimula que os cidadãos tratem essas pessoas de forma desumana. É um estímulo à violação de direitos chancelada pelo Estado.
Cristiano Maronna, advogado e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP
À medida que o Estado trata essas pessoas dessa forma, o cidadão comum também se sente à vontade para tratar pessoas com desumanidade
Espaço de convivência para usuários
Prefeitura deu parecer para criação de um centro de convivência e cooperativa na região. A informação é do presidente do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool de São Paulo, o psicólogo Marcos Muniz de Souza. "Em agosto, tivemos um parecer favorável da prefeitura de que será criado até o fim do ano."
É preciso considerar "toda a complexidade do território e dos usuários e frequentadores da região", diz o psicólogo. "O grande problema da cracolândia é a perturbação da ordem pública. Por isso, estamos propondo uma política pública, não uma política de governo."
Ali não deixa de ser um espaço de uso [de drogas] a céu aberto, inclusive, com a supervisão da polícia. Precisa ter outras abordagens de baixa exigência para que os usuários sejam localizados e acessados. Percebo ali uma zona de conflito, onde a população começa a fazer justiça com as próprias mãos.
Marcos Muniz de Souza, presidente do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool de São Paulo