'Nem se metam com putarias': Bíblia freestyle traduz texto com gírias

Na era da rápida evolução da linguagem e da comunicação, os esforços para tornar os ensinamentos antigos mais acessíveis e relevantes para as gerações modernas estão em ascensão. Uma dessas iniciativas é a "Bíblia Freestyle", uma adaptação contemporânea dos textos sagrados que busca alcançar um público mais amplo por meio de uma linguagem atualizada e bastante informal.

Em 2011, o pastor Ariovaldo Júnior começou a publicar sua paráfrase da Bíblia em um blog. Diariamente ele fazia a publicação de um capítulo do texto sagrado dos cristãos, e a repercussão, segundo ele, foi "assustadora". Sua motivação partiu de sua própria dificuldade com o texto.

Me converti ao protestantismo na metade dos anos 90. Na época, era comum o uso de versões com linguagem bem formal e pouco contemporânea. Havia a necessidade de carregar um dicionário junto da Bíblia. Ariovaldo Júnior, pastor

Ariovaldo lembra que já naquele período brincava com a ideia de uma Bíblia feita numa versão que "falasse a língua dos seres humanos de verdade".

A "Bíblia Freestyle" não é uma tradução ou versão oficial da Bíblia, mas, sim uma paráfrase que faz o uso de gírias, alguns palavrões e a inserção de analogias que tentem explicar os ensinos de Jesus baseados em elementos da cultura contemporânea. Ela visa desmistificar os ensinamentos bíblicos, muitas vezes expressos em linguagem arcaica, tornando-os mais compreensíveis e relevantes para os leitores contemporâneos.

Na tradução Almeida Revista Atualizada, publicada no Brasil em 1959, pela Sociedade Bíblica do Brasil, uma das versões mais utilizadas pelos evangélicos no Brasil por décadas, o texto de Romanos 13.13-14, por exemplo, está descrito da seguinte maneira: "Andemos dignamente, como em pleno dia, não em orgias e bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em contendas e ciúmes; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e nada disponhais para a carne no tocante às suas concupiscências."

Já na paráfrase escrita pelo pastor Ariovaldo Júnior, a Bíblia Freestyle, o mesmo texto foi apresentado de outra maneira: "Vivam honestamente, não vivam comendo ou bebendo além do que convém, não fiquem procurando negócios desonestos nem se metam com putarias, nem invejem ou briguem, vistam-se das coisas de Jesus e não se dediquem aos desejos do corpo."

Outro exemplo é o relato de Jesus, contido no evangelho de Mateus, capítulo 26, pouco antes de ser capturado e levado para a crucificação. Jesus foi com seus discípulos para o Getsêmani para orar, mas, os que acompanhavam Jesus foram vencidos pelo sono e depois repreendidos por Jesus. Na Bíblia Freestyle, a bronca de Jesus aos discípulos foi parafraseada assim: "Ô, cambada, vocês num aguentam nem uma hora acordados? Se fosse UFC, vocês ficariam a noite toda pra ver o card principal né? Tomem um Redbull!"

Em Marcos, capítulo 4, foi utilizada a palavra "bundamolice"; Em Lucas 7, a palavra "foderoso". Já a decisão de José de deixar Maria após descobrir a gravidez sobrenatural, na Bíblia Freestyle, "a história cheirasse a chifre". Essa abordagem se destaca pela sua linguagem casual e moderna, que busca cativar especialmente as gerações mais jovens e aqueles que podem não estar familiarizados com os termos e estruturas tradicionais da Bíblia.

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Palavras e expressões arcaicas são substituídas por equivalentes contemporâneos, e as histórias bíblicas são recontadas sem que se perca o sentido original do texto.

A oração do Pai Nosso, um dos textos mais conhecidos da Bíblia, foi parafraseada "na língua dos seres humanos de verdade" da seguinte forma:

"Pai nosso aí no céu, seja o seu nome santificado sempre. O seu reino e vontade estejam em todos os lugares. Nos dá o básico pra vivermos o dia de hoje. Perdoa as porcarias que fizemos, assim como nós perdoamos os que nos perturbam. Não deixe a gente se ferrar com a tentação do nosso próprio desejo. Nos liberte de nós mesmos e de todo o mal. O reino, poder e glória são seus. Tudo é seu. Valeu, pai!" (Mateus 6.9-13, Bíblia Freestyle).

No entanto, críticos apontam que essa adaptação pode comprometer a fidelidade aos textos originais e diluir a profundidade espiritual dos ensinamentos bíblicos. Ainda assim, defensores da "Bíblia Freestyle" argumentam que essa abordagem pode abrir portas para um novo público que de outra forma não se sentiria atraído pelos ensinamentos bíblicos em sua forma tradicional.

Para Victor Fontana, teólogo e mestre em teologia, "toda tradução é uma traição; e talvez a paráfrase seja uma traição ainda maior." No entanto, Victor lembra que já não se tem mais o texto bíblico original "a gente tem cópias e as variantes textuais que essas cópias geram"; com isso, na perspectiva dele, que também é professor de teologia, a melhor tradução não é necessariamente a que está mais fiel ao original, "a primeira coisa que a gente tem que olhar em uma tradução é se está traduzida para uma língua que eu conheço, porque pode ser muito fiel ao [texto] original, mas se tiver traduzido para o sueco, eu não sei ler sueco, então não adianta nada."

O teólogo também aponta que uma tradução pode ter data de validade, "tão logo as expressões nela utilizadas deixem de ser utilizadas no linguajar de uso corrente".

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A diferença de uma tradução oficial para uma paráfrase, de acordo com o especialista, é marcada de várias formas, mas principalmente pelo processo aplicado. Segundo ele, existem as traduções que vão buscar a maior proximidade possível com o texto e idioma original, buscando uma adaptação para uma nova gramática, conforme a língua para que se está traduzindo. E existem as traduções que se dedicam mais a aplicação formal da gramática original, sem adaptações para a nova língua, na expectativa de se manter a literalidade das palavras. Na paráfrase o percurso de escrita é outro.

Você pega aquilo que está escrito no idioma original, vê qual é o funcionamento e reescreve. No caso da Bíblia Freestyle, parece que foi feito uma segunda redação numa linguagem mais acessível, parafraseada, daquilo que foi originalmente escrito, Victor Fontana

Ariovaldo lembra que as maiores críticas vieram pelo uso dos palavrões. "Fazia total sentido substituir, por exemplo, a palavra 'meretriz' por 'puta'. Ninguém no mundo real usa a palavra meretriz". O trabalho de parafrasear o Novo Testamento levou 9 anos; o maior arrependimento do pastor foi não ter publicado "sob um pseudônimo" e sobre uma possível paráfrase do Antigo Testamento, Ariovaldo reflete "talvez tenha passado a época".

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