'Pensei que sequestradora era a minha mãe': ele achou família após 34 anos
Josenildo tinha 11 anos quando foi sequestrado em Rio Branco (AC). Isso é o que ele sabe agora, mas, por muito tempo, sua história foi repleta de lacunas e lembranças confusas. Ele reencontrou a mãe biológica, Iraci Feitosa da Silva, 69, depois de 34 anos do sequestro. Um sonho em que diz ter ouvido o nome dela e visto a casa de uma tia o ajudou a achar seus parentes biológicos.
A isca para o sequestro
O ano era 1987 quando o menino passava por um trauma: seu pai havia sido assassinado, em uma briga durante a comemoração de um aniversário. Josenildo vendia comida na rodoviária da cidade para ajudar a sustentar a família, quando uma mulher o atraiu dizendo que poderia levá-lo ao assassino do pai.
Atraído pela vontade de vingança, ele entrou em um ônibus com a mulher. Desembarcou desorientado primeiro em Porto Velho (RO). Depois, foi vendido a uma família em Florianópolis (SC) em um esquema de tráfico infantil. A partir dali, a percepção de sua história nunca mais foi a mesma. O trauma o fez esquecer informações significativas da vida, a ponto de achar que a sequestradora era sua mãe.
Nunca descobrimos quem era essa mulher [sequestradora]. Mas, para mim, ela era a minha mãe e tinha me abandonado. Foi muita revolta com isso. Minha história é uma coisa, mas eu lembrava outra.
Certa vez, em Florianópolis, o menino foi levado a um parque de diversões e ali sentiu que deveria fugir. Ele foi deixado em um carrossel e perdeu de vista a sequestradora. Lembra de ter percepções confusas, como sensações de abandono e a de que deveria correr, porque pensou que ela poderia "vendê-lo ou dar para alguém".
Quando o brinquedo parou, eu saí, olhei para os lados e não vi [a sequestradora].
Ele tinha o sentimento de voltar para o Acre ou Porto Velho, mesmo muito confuso sobre as razões. Então, vagou pelos estados como pôde: pedindo carona e sobrevivendo de esmolas.
Passei por vários lugares, só Deus para explicar uma história tão longa. Pedia carona, se não me dessem, eu subia no caminhão, ia na traseira. Saí mundo afora para viver sozinho, pedindo as coisas. Deus estava me guiando e me colocou no caminho certo.
Chegou ao Acre no início da adolescência —segundo ele, com 13 ou 14 anos. Lá, foi acolhido por uma família que tinha uma fazenda, mas decidiu ir embora porque brigava muito com as outras crianças.
Por fim, outra família o acolheu e adotou. Josenildo foi registrado pelo casal Sebastião e Zinha Tigre e ganhou o nome de Francisco. A mãe adotiva sempre o incentivou a buscar suas raízes, mas ele recuava, por acreditar ter sido abandonado. Quando ela morreu, há mais de 20 anos, pediu que Josenildo não desistisse de saber sua história. O pedido ecoou por anos, até ele decidir se mudar para Rio Branco em 2014.
O sonho e o reencontro
Ele evitava conversas sobre o seu passado, porque pensar nisso era um "pesadelo". "Não queria reencontrar minha mãe biológica, porque achava que era uma coisa, e era outra. Nunca fui abandonado, ela ficou sofrendo."
Tudo mudou após um sonho com a mãe adotiva. Foi a esposa dele, Andrea Ferreira, quem percebeu algo estranho: deitado, ele parecia "delirar", dizendo coisas desconexas.
Na minha mente, quem estava falando comigo era minha mãe [adotiva, a Zinha]. Ela me falou que estava na hora de ela descansar e que eu teria de me libertar. E, nisso, falou: 'Meu filho, você conhece a Iraci Feitosa da Silva?' E me deu uma luz, que veio a imagem da casa da minha tia.
Ele acordou com as memórias vívidas e foi à rua em que imaginava ser a localização da casa. "Tinha o interesse de procurar a pessoa mais velha da rua, que teria conhecido minha mãe e me falaria o nome dela. Mas fui perguntar logo para minha tia, que mora lá há 50 e tantos anos."
A confusão se instaurou quando ele contou sua história e disse procurar por Iraci. Vários parentes foram à casa antes de avisar a mãe biológica. Houve zelo porque Iraci se frustrou muitas vezes ao longo dos anos, acreditando ter achado o filho. O sofrimento e o insucesso nas buscas a levaram a ter depressão. "Toda a vida ela nunca me teve como morto."
Minha mãe nunca perdeu as esperanças, sempre lutou, sofreu muitos transtornos com a mente dela. Aniversários, datas festivas eram um problema, porque ela sempre teve esperança e pedia a Deus para me reencontrar.
Quando Iraci foi chamada para vê-lo, o abraçou sem hesitar: sabia que tinha encontrado o seu filho. Eles fizeram um exame de DNA para tirarem as dúvidas, e o resultado foi positivo. O encontro ocorreu em 2021, quando ele tinha 46 anos. Depois da confirmação, seu nome foi alterado para Francisco Josenildo, mesclando os nomes de batismo e o dado pela mãe adotiva.
De volta para casa
Tão perto, mas tão longe. A surpresa ao encontrar a mãe foi grande, porque ele vivia próximo a ela. "Eu estava tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe. Tenho um amigo que mora três casas depois da casa da minha mãe biológica. Vivia com ele e nunca encontrei com ninguém."
Parte das lembranças voltou após ouvir a história dos familiares, mas ele não se importa em entender detalhes do que aconteceu. Sua preocupação é que Iraci melhore após reencontrá-lo. "Não procurei saber o que houve realmente comigo. O que importa é que minha mãe já melhorou muito. Não vive mais do jeito que vivia."
Também há o desconforto de reviver momentos trágicos. Foi por meio dos irmãos que ele relembrou o assassinato do pai biológico. As memórias são duras e o fazem lembrar da morte do pai adotivo, Sebastião, que também foi assassinado. "Muitas coisas voltaram à mente e fiquei um pouco perturbado."
Trauma pode levar ao esquecimento
Esquecer memórias traumáticas é um mecanismo do cérebro chamado amnésia psicogênica. Geralmente, a tendência é o inverso: a criação de memórias duradouras, que podem virar pensamentos intrusivos (forma como o transtorno do estresse pós-traumático se expressa, inclusive). "[O esquecimento] é um mecanismo primitivo, que percebemos principalmente nas crianças com cérebro ainda imaturo e incapaz de se defender psiquicamente de tal agressão", explica o neuropsiquiatra José Waldo Câmara, professor da Universidade Católica do Pernambuco.
A neurociência explica o fenômeno como uma consequência do estresse extremo: o individuo se protege contra uma ansiedade insuportável do evento traumático, 'desligando' alguns sistemas, o que leva a um estado dissociativo da mente e impede o registro da experiência. José Waldo Câmara, neuropsiquiatra