Conteúdo publicado há 3 meses

Ex-traficante e ex-dependente deixam 'cracolândia' e vivem história de amor

Após passarem vários anos nas ruas da "cracolândia", no centro de São Paulo, uma ex-traficante e um ex-dependente químico hoje vivem uma história de amor longe do crack e ajudam outros a também superarem o vício.

O que aconteceu

Isildinha Aparecida, de 53 anos, traficava para manter o próprio vício e chegou a beber gasolina em vez de água. Ela morava com a família em Itaquera, na zona leste de São Paulo, e começou a frequentar a "cracolândia" no início dos anos 2000. A mãe e o irmão também eram dependentes químicos. Vinha caminhando até o "fluxo" —como é chamado o local onde todos se concentram. Becos, vielas e esquinas eram pontos de parada para o consumo, e o papelão, a cama improvisada para virar a noite.

O Conselho Tutelar retirou a guarda dos seus cinco filhos. "Perdi tudo, [inclusive] a minha dignidade, porque a droga tem esse poder de destruição. Por todos os becos e vielas, usando todos os tipos de drogas possíveis até chegar à "cracolândia". E, quando eu cheguei, estava pronta para morrer. Achava que a minha vida não tinha mais jeito, entende? Então, eu vim em busca da morte na cracolândia", disse ela, em entrevista ao UOL.

Eu cheguei ao ponto de precisar beber água sentada no vaso sanitário, por não aguentar o próprio corpo. Eu tinha muita sede, só que eu tinha o hábito também de tomar gasolina. Eu fumava e bebia gasolina ou etanol [em vez de água].
Isildinha Aparecida

Marco César Manos, 53, era dependente de crack e ficou preso por 14 anos. Estudou em escola pública tradicional na região da Consolação e tinha uma vida financeira relativamente boa, mas foi seduzido pelas drogas ainda na adolescência, como ele mesmo resume. O padrasto morreu, a mãe precisou se mudar para Campinas (SP) e ele passou a morar sozinho no apartamento da família.

Desde pequeno, eu ia para escola e aquela região ali era a 'boca do lixo': muita prostituição, muita boate... Acabei sendo seduzido por aquilo. Aos 18, eu me envolvi com as drogas e logo de cara com o crack. Foi indo, foi indo, e quando eu vi, eu já estava aqui nas ruas da "cracolândia".
Marco César Manos, em conversa com o UOL

Ele perdeu as contas de quantas vezes ficou preso, principalmente por furtos. Roubava com objetivo de comprar mais drogas. Passou pelo CDP (Centro de Detenção Provisória) de Pinheiros e a extinta Casa de Detenção de São Paulo, também conhecida como Carandiru. "Já tinha perdido o contato com a minha família. Então, saía do presídio e vinha para cá."

Isildinha ficou por quase 25 anos, e Marco 15, no "fluxo" da "cracolândia". Apesar do tempo, os dois nunca se esbarraram nas ruas. "Se nos vimos, não chegamos a nos conhecer", afirma ela, olhando para o marido com um sorriso no rosto.

Virada de chave e 'um amor à primeira vista'

Anos depois, cada um decidiu buscar e permitir ajuda, no seu tempo. Os dois foram resgatados por voluntários de um projeto social, a "Cristolândia", que fica na região da própria "cracolândia", ligado a uma igreja evangélica. Receberam banho, comida e um abraço de conforto. Aos poucos, recuperaram o contato com a família (e a dignidade que haviam perdido!). Nada foi fácil. Houve todo um processo árduo para a recuperação.

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Sair sozinho daquela condição em que estávamos é praticamente impossível. Sem uma mão para nos ajudar e fazer aquilo que sozinhos não tínhamos força, não havia perspectiva. Acredito que muitos outros também estão cansados de tanto sofrimento e opressão. Mas sem ajuda, não dá. Marco César

Atualmente, os dois participam juntos da ação social que ajuda outros dependentes a saírem da "cracolândia". Eles sempre se viam nos corredores, com troca de olhares, mas não conversavam. A iniciativa partiu dela num momento delicado. "Eu lembro que recebi bastante mensagem de pêsame e condolências quando a minha mãe faleceu. Mas ela foi a única que ligou, conversou e orou comigo. [A iniciativa] partiu dela, nesse momento de luto."

Houve uma proximidade a partir daí, e o início do namoro firmado num encontro no Ibirapuera, meses depois. Ela tem cinco filhos de outros relacionamentos, e ele, dois. Nada disso, no entanto, foi impedimento para seguirem adiante. O casal agora irá completar dois anos de relacionamento em novembro, mas com a certeza do sentimento que mantêm um pelo outro. "É, eu posso dizer que sim [foi amor à primeira vista], né? Mas tudo foi um processo", afirma Isildinha.

Questionados sobre como resumir a história de amor que construíram, Marco define. "Como um amor que parecia impossível de acontecer, pelas circunstâncias que cada um estava vivendo nas ruas, a idade, e até mesmo por falta de amor de si próprio. Mas, quando houve essa mudança em nós, e prouve o Senhor que nos conhecêssemos, tive a certeza que ela é um presente de Deus para mim"

Com certeza [existe amor na "cracolândia"]. É possível que sejam amores não compreendidos, amores sufocados pelo torpor da droga, mas, sim, existem. Marco César ao definir amor que surgiu na região

O raio-x da "cracolândia"

A "cracolândia" passou por transformações. O "fluxo" está concentrado atualmente na rua dos Protestantes, no centro da cidade, mas já percorreu ao menos 18 vias nos últimos 17 anos, concentradas em cinco pontos, conforme levantamento feito pelo UOL. As ruas por onde a cracolândia passou ficam em uma área de 1 km quadrado.

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Fluxo no centro não é considerada a única aglomeração de dependentes de drogas na capital. O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) identificou 72 concentrações de dependentes químicos espalhados por 47 bairros no primeiro semestre de 2023, segundo dados aos quais o jornal Folha de S.Paulo teve acesso. São 160 cracolândias em 45 cidades do estado.

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Imagem: Arte/UOL

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