Ela perdeu marido em voo da Gol e usou indenização para dar floresta a ele

O ano era 2006. Mauro Romano, 50, havia viajado a Manaus para fazer uma auditoria em uma empresa de tecnologia. Era engenheiro metalúrgico, especialista em controle de qualidade.

Na volta, há exatos 18 anos, ele embarcou no voo 1907, que tinha o Rio como destino e faria escala em Brasília.

O avião, da Gol, acabou caindo em uma região de mata fechada, próximo à divisa entre o Pará e Mato Grosso. O jato Legacy bateu contra a estrutura da aeronave comercial —e ninguém das 154 pessoas a bordo sobreviveu.

Mauro vivia no Rio com a esposa Denise Thomé, com quem era casado havia 24 anos.

Após a morte do companheiro, Denise decidiu investir em um projeto: usou parte do dinheiro da indenização recebida com o acidente para criar uma floresta que hoje tem 8 mil árvores e leva o nome do engenheiro.

Denise Thomé e Mauro Romano foram casados por 24 anos; após morte em acidente, ela continuou projeto "rascunhado" por ele
Denise Thomé e Mauro Romano foram casados por 24 anos; após morte em acidente, ela continuou projeto "rascunhado" por ele Imagem: Arquivo Pessoal

'Foi tudo muito brusco'

"Foi tudo muito brusco, 14 dias até localizarem o corpo dele, aquela emoção muito forte", lembra Denise, sobre os primeiros momentos após o acidente.

Apenas uma semana antes do voo trágico, o casal estava animado com o início de um projeto: uma feira de mudas de plantas, na região de Vassouras (RJ). Também estava empenhado na arborização da rua do sítio do sogro de Denise, na mesma região.

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"Em 2006 [antes do acidente], em um grupo de umas 10 pessoas, surgiu a ideia de gerar uma renda um pouco maior para os caseiros dos sítios da região. Já é muito comum ter de fazer as podas de plantas entre maio e setembro, então a ideia era reunir essas podas para criar um estoque de mudas de plantas ornamentais para vender", lembra Denise, sobre os planos da feira de mudas.

Os rapazes que estavam nesse grupo me convidaram a continuar [depois do acidente], porque nós tínhamos o nome, missão, visão: tudo o Mauro deixou. Eles propuseram um mutirão de plantio de árvores.
Denise Thomé

Só naquele ano, foram 50 árvores plantadas. E o plano ganhou escala.

Denise usou parte do dinheiro da indenização pelo acidente para comprar um terreno de 30.000 m² e começou a transformar um antigo pasto de cavalos em área de preservação.

Denise decidiu dar sequência a projeto e usou indenização para ampliar iniciativa
Denise decidiu dar sequência a projeto e usou indenização para ampliar iniciativa Imagem: Arquivo pessoal

Foi a filha mais velha quem recomendou à mãe que resolvesse rapidamente as questões jurídicas sobre o caso, para seguir a vida.

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Sem se esquecer da personalidade do marido, que "tinha horror a esses processos", ela fechou o acordo com a companhia aérea pouco tempo depois do acidente.

A gente não quis ficar fazendo da tragédia um 'arrasta corrente'. Não era uma coisa de que eu dependia [a indenização] e o próprio Mauro tinha horror a esses 'eu vou ganhar isso na Justiça'. Acatei o que minha filha falou, me aposentei depois, e agora me dedico ao voluntariado, porque tenho essa possibilidade.
Denise Thomé, ao UOL

Hoje, o projeto Vale Verdejante tem dedicação integral de Denise —ela se aposentou em 2009, após 20 anos como servidora da Caixa, e deixou a capital do Rio em 2017 para morar perto da ONG.

Mauro (de vermelho), Denise e os outros colaboradores na fundação do projeto, em 2006
Mauro (de vermelho), Denise e os outros colaboradores na fundação do projeto, em 2006 Imagem: Reprodução/Instagram/@valeverdejante

'Ajudou a mim e a muita gente'

A ambientalista lembra do marido como um "otimista, até exagerado" e conta que se envolver com o projeto a ajudou a processar a dor da perda.

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Ajudou a mim e ajuda muita gente, porque você vê a vida 'rebrotando' e passa a ter uma outra dimensão. Eu era gerente de banco então tinha uma vida muito ativa, demandante, mas é claro que aquela tristeza foi muito puxada para nós todos, canalizamos tudo o que a gente podia (para o novo projeto).
Denise Thomé

Parque "Mauro Romano" é protegido por lei

Em novembro deste ano, Denise e os voluntários do Vale Verdejante devem plantar 500 mudas de árvores nativas.

O evento, planejado sempre para a época de início das chuvas, acontece pelo 17º ano consecutivo. Não foi interrompido nem em meio ao baque econômico causado pela pandemia.

Em 2020, em meio às dificuldades, Denise teve uma vitória: sua floresta virou oficialmente uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), unidade de conservação reconhecida por lei.

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Projeto já plantou milhares de mudas, e Denise não quer parar
Projeto já plantou milhares de mudas, e Denise não quer parar Imagem: Arquivo pessoal

O status garante que, mesmo que a terra passe para outro proprietário, a RPPN Mauro Romano —como é chamada, em homenagem ao marido— permanecerá preservada.

"Nos 2,2 hectares que são RPPN só podem existir plantas nativas, como o cacau, que estamos introduzindo. Mas nos outros 0,8 ficam canteiros em que a gente tem mais liberdade, para plantas medicinais, aromáticas e o café, que não é nativo."

Estreamos agora nosso primeiro café, que plantamos mais ou menos em 2017. Gerou umas cinco 'xicrinhas', é tudo bem artesanal.
Denise Thomé

Hoje, o projeto já vê o retorno da flora típica da Mata Atlântica, observada por uma câmera de registro.

Denise tem apenas um funcionário fixo, responsável por acompanhar o dia a dia do terreno. Todo o resto do trabalho é feito por voluntários, muitos deles estudantes das universidades nos arredores de Vassouras.

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E já são 15 trabalhos acadêmicos sobre o Vale Verdejante.

"Uma coisa que vejo como educadora ambiental é a necessidade de estar unida ao ensino formal. Às escolas, às universidades, porque é ali que a gente consegue juntar a galerinha e dar nosso ponto de vista."

'Compromisso infinito'

Denise também busca o estudo por conta própria: participa de cursos e fóruns pelo país para aprimorar seu trabalho. E tem o sonho de da transformar a ONG em uma organização autossustentável —sem depender de incentivos externos.

Entre aqueles que a motivaram a seguir com o projeto idealizado por Mauro, todos permanecem como sócios-fundadores, apesar de não tão ativos quanto a ambientalista. Ela admite sentir um "compromisso infinito" com a Vale Verdejante.

Nós estamos 18 anos mais velhos, né? Por mais que eu reclame que me sinto exausta, meus filhos me dão esse retorno de que seria pior se eu não tivesse essa ocupação. Foi fundamental ver a vida renascer. Olho para uma árvore e sei que ela veio da semente que eu plantei, você acaba tendo uma relação familiar.
Denise Thomé

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Além disso, a ex-gerente de banco diz que o trabalho na ONG fez com que ela se encontrasse profissionalmente.

Eu sempre soube que era um peixe fora d'água. Fiz um concurso da Caixa por uma necessidade familiar, por uma contingência da vida. Me casei com 17, fui mãe pela 1ª vez aos 18, mas, se eu pudesse, teria feito faculdade de ecologia. Quando aconteceu isso, eu me dei o direito de tentar.
Denise Thomé

Diálogo e retorno

Denise viu a vida 'rebrotar'; diálogo com a comunidade é um desafio
Denise viu a vida 'rebrotar'; diálogo com a comunidade é um desafio Imagem: Arquivo pessoal

Entre os desafios que ela vê hoje, está o diálogo com a população do entorno.

Existe dificuldade na conversa entre o fundador de uma ONG e as pessoas que convivem com os possíveis benefícios. Acho que a gente precisa de profissionais que realmente consigam mediar esse diálogo. Sinto falta do Mauro nisso, pode ser que ele fosse essa pessoa que faria esse meio de campo melhor.
Denise Thomé

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Antes da pandemia, a ONG tinha até a participação de agricultoras mulheres, mas isso acabou se perdendo em meio à crise sanitária. Denise diz que só agora, quatro anos depois, as contas estão voltando a se equilibrar.

"Temos uma trilha de 2 km e estamos tentando nos aproximar do turismo, porque isso automaticamente gera renda para a comunidade, de uma certa forma tem uma replicação. A comunidade precisa de geração de renda."

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