Ele é pastor trans: 'Conheci o Evangelho e hoje sei que Jesus me aceita'
A história do pastor Heliano Ferreira Silva, 45, um homem trans, tem elementos comuns aos relatos de outras pessoas transexuais: a repressão e o preconceito da família.
Os desafios aumentaram quando ele descobriu um câncer de mama durante a transição de gênero. A fé foi o seu refúgio e o lugar onde achou uma missão de vida.
"Por mais que 90% da sociedade fale que os LGBTs não herdarão o reino do céu, depois que conheci o Evangelho, eu sei que Jesus me aceita", disse Heliano, em entrevista ao UOL.
Não vivo em promiscuidade, eu sou esposo de uma mulher só, casei diante de Deus e pela lei, porque hoje ela garante isso. Pior são homens e mulheres em cima de altares, mentindo para si próprios, para a sociedade e para Deus. Esses, sim, acho que irão pagar uma conta alta com Deus.
Heliano Ferreira Silva, pastor
Sempre soube que você era 'sapatão'
Heliano foi criado em um lar católico, bastante conservador. Lembra de notar a atração por pessoas do mesmo sexo biológico ainda na infância: se afeiçoou a uma amiga da escola, mas barrou o sentimento.
Ouvia em casa que desejos desse tipo não eram normais. Falas assim o traumatizaram, a ponto de nunca se ver cedendo à vontade de se envolver com mulheres.
Minha família sempre foi muito preconceituosa com pessoas LGBTs. Chegou um ponto em que eu pensei: como eu vou ter um relacionamento com outra menina? Eu não posso. Eu sou sapatão? Eu vou para o inferno, minha mãe vai me dar uma surra.
Heliano Ferreira
"Entrei numa caixinha e não saí. Ficava com homens e, às vezes, pensava se eu era ou não, na época, uma mulher lésbica", conta o pastor.
Ele nunca beijou uma mulher até os 34 anos. Ao terminar o segundo casamento, percebeu que não suportava mais a dúvida.
Quis se permitir, mas, antes, com medo dos julgamentos, perguntou às amigas se elas o aceitariam caso se relacionasse com mulheres. "Elas me disseram que eu já tinha um jeito de 'sapatão'", fala.
Heliano recorreu à internet para conhecer mulheres. "Fui muito real, falei que não sabia como era ficar com mulher, e ela disse que tudo bem, para a gente ficar junta e ver se era isso. E entendi que não queria mais homens na minha vida. Isso já faz 11 anos."
Dessa vez, legitimar os desejos, reprimidos por tantos anos, incluía não temer se expor. Heliano não era mais uma criança. Por isso, logo conversou com a sua mãe e, para sua surpresa, a ouviu dizer: "sempre soube que você era 'sapatão'".
"Eu quase 'catei' ela. Por que ela não me falou que sabia? A vida inteira me cobrei, me recriminei achando que ela ia me jogar fora se eu ficasse com mulher", lembra.
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Quero receber'Quis abraçar o capeta'
O início não foi fácil. As rígidas crenças aprendidas na infância inconscientemente o levavam a acreditar que a homossexualidade não estava em comunhão com os valores de Deus. Isso o afastava de qualquer exercício de fé.
Achei que Deus não me aceitava, que eu estava no inferno. É o que as igrejas tradicionais dizem. Então, eu quis 'abraçar o capeta', dançar com ele. Comecei com promiscuidade, um vandalismo com a minha vida.
Heliano Ferreira
Heliano conta que, nessa época, vivia bêbado. "Não tinha ninguém, pegava, mas não me apegava." Até que recebeu o convite de uma amiga para ir ao culto de uma igreja inclusiva, em que pessoas LGBTs são bem-vindas. Lá, diz ter conhecido um Evangelho que o acolheu e o incentivou.
Um ano após entrar na igreja, ele conheceu Maiara —hoje, sua esposa. Os dois se apaixonaram e estão juntos há sete anos. Em maio deste ano, fundaram sua própria igreja no interior paulista. O nome escolhido, Kaléo, é interpretado como "chamado" ou "vocação".
Durante a relação com Maiara, não demorou para Heliano perceber que não era uma mulher lésbica, mas um homem; portanto, queria ter a aparência tida como masculina e ser tratado como um homem. "Também não sou um trans machão, um homem que quer 'coçar o saco'."
Ele temia que a transição de gênero não fosse compreendida pelos filhos e por sua esposa.
"Falei para minha esposa: quero fazer a transição. Você aceita?". A companheira disse que não seria contra nenhuma vontade dele. "Se é esse o seu desejo, eu aceito", respondeu. O próximo passo foi falar com os filhos, que também o acolheram sem hesitar. "Automaticamente, eles começaram a me chamar de pai", lembra.
Heliano começou a transição em 2018 fazendo terapia hormonal, o tratamento com hormônios que ajuda a dar "características tidas como masculinas" ao corpo. Ele conta que uma das suas principais vontades era sentir a barba no rosto.
Câncer de mama durante a transição de gênero
No fim de 2020, a vida de Heliano mudou. Maiara, que cursava enfermagem, chegou em casa após uma aula de autoexame nas mamas. Pediu para ensinar ao companheiro e, ao fazer o exame nele, notou um caroço na mama direita.
Heliano foi ao médico e recebeu a confirmação de um câncer após exames. A doença o impedia de seguir com as terapias hormonais, proibidas também após o fim do tratamento oncológico pelo risco de novos cânceres surgirem.
Foram 16 ciclos de quimioterapia até a cirurgia de retirada da mama, a mastectomia, em 2021. "Foi a minha maior luta, porque tiraram uma mama só, mesmo com o meu desejo de tirar as duas", diz.
Era horrível olhar no espelho e ver uma mama só. Isso desencadeou um processo de não querer me olhar no espelho, não querer estar com a minha esposa. Chorava bastante e sofri muita disforia [o sofrimento por viver em um corpo que não corresponde ao seu gênero, comum em pessoas trans].
A retirada da outra mama aconteceu só em maio deste ano —e somente por prevenção contra nódulos benignos identificados em exame, não pelos inúmeros pedidos de Heliano na tentativa de avançar no processo de masculinização.
"Hoje, eu compreendo o que os trans falam sobre ter dois intrusos, porque tirar [as mamas] é libertador."
"Agora, estou 100% Heliano, vivendo o que sempre quis viver e sem câncer. Estou em remissão há 3 anos, fazendo exames todos os anos, mas graças a Deus sem vestígios de volta do câncer."
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