Tribunal do crime: por que facções raspam cabelos de mulheres?
Maurício Businari
Colaboração para o UOL
10/01/2025 05h30
Mulheres tiveram cabelos raspados à força por facção criminosa no Rio, acusadas de integrarem um "grupo de fofoca". Advogados ouvidos pelo UOL explicam o emprego de práticas brutais como forma de controle social.
O que aconteceu
Quatro mulheres foram punidas por membros de uma facção criminosa. Um vídeo, divulgado no dia 7 de janeiro, mostra as vítimas sentadas enquanto homens armados raspam seus cabelos com máquinas e lâminas.
Elas foram acusadas de descumprir normas impostas pela facção. Além de estatutos, facções criminosas como o Comando Vermelho, no Rio, e o PCC (Primeiro Comando da Capital), em São Paulo, também possuem códigos que podem se estender a familiares de seus membros.
Os criminosos demonstram no vídeo que as mulheres fariam parte do "grupo da fofoca". A disseminação de informações sobre os criminosos que atuam na comunidade ou até mesmo críticas são consideradas uma transgressão, segundo especialistas. Uma das vítimas teve o couro cabeludo coberto com tampinhas de refrigerante, aumentando o constrangimento.
A cena explora a humilhação sofrida pelas mulheres. 'Tinha que dar 50 chineladas em cada uma'', fala uma voz ao fundo. Enquanto isso, um dos homens aponta para uma e dizem que ela é ''a pior''.
A prática de raspar os cabelos busca controlar as vítimas. Segundo o advogado criminalista Fernando Viggiano, a punição é uma forma de desonra, especialmente para mulheres, já que o cabelo é visto como um símbolo de feminilidade e vaidade.
As punições buscam garantir obediência e manter o poder. Segundo Viggiano, a brutalidade dessas práticas é calculada para espalhar o medo e consolidar o controle sobre membros da facção e a comunidade. "Esse sistema opressor visa impor regras e prevenir qualquer tipo de desvio ou desobediência", afirmou.
Raspar os cabelos simboliza desonra e intimidação. Fernando Viggiano explicou que essa punição é comumente aplicada a mulheres acusadas de traição, infidelidade, ou de colaborar com rivais ou a polícia. "A cabeça raspada chama mais atenção em mulheres, amplificando o efeito de humilhação pública e controle social", destacou.
A violência física pode ter efeitos psicológicos devastadores. Vanessa Avellar Fernandez afirmou que o ato de raspar os cabelos não apenas viola fisicamente, mas também ataca a dignidade feminina. "Para muitas mulheres, o cabelo é parte da identidade. Raspá-lo contra a vontade é destruir parte dessa identidade, o que gera impactos psicológicos profundos". Com medo, quem é punido acaba "entrando na linha".
Justiça paralela
O Tribunal do Crime segue uma lógica de justiça paralela. Fernandez comparou a estrutura das facções a um tribunal formal, onde líderes agem como juízes e decidem punições de acordo com suas normas. "Eles julgam quem consideram culpado e aplicam penas que vão de humilhações a homicídios", explicou.
O sistema inclui até uma fase de defesa para os acusados. A advogada revelou que os réus podem apresentar argumentos e até testemunhas para se defenderem, mas, se não convencerem os líderes da facção, as consequências podem ser fatais.
O Estado falha em conter a influência das facções nas comunidades. Fernandez criticou a ausência de políticas públicas para combater a violência e oferecer oportunidades aos moradores. "O Estado fecha os olhos para essas comunidades. A falta de emprego e educação cria um terreno fértil para o domínio das facções", disse.
Casos como o ocorrido no Rio de Janeiro são mais comuns do que se imagina, segundo os especialistas. Ambos os advogados concordaram que essas práticas ocorrem diariamente, mas passam despercebidas pela sociedade. "Esse caso só ganhou atenção porque foi filmado, mas muitos crimes são abafados pela própria dinâmica de medo imposta nas comunidades", afirmou Fernandes.
A repercussão pública é uma exceção, e não a regra. "É preciso entender que a realidade do Tribunal do Crime é muito mais frequente e complexa do que o caso das mulheres punidas", afirmou Viggiano, reforçando a necessidade de maior atenção do Estado e da sociedade para enfrentar o problema.
Outros casos
Em 2016, três mulheres tiveram suas cabeças raspadas à força na Ladeira dos Tabajaras, no Rio, sob acusações de colaborar com a polícia. O ato foi filmado e revelado em um vídeo que mostra também agressões físicas. Segundo a Polícia Civil, as vítimas não retornaram à delegacia para prestar depoimento, dificultando a investigação.
Na Bahia, uma mulher grávida foi punida de forma semelhante por um relacionamento com um integrante de facção rival. Criminosos da Catiara rasparam seus cabelos e sobrancelhas em público, enquanto a obrigavam a repetir gritos de guerra da facção.