'Pai, tomei um tiro': jovem enfrenta luta diária após ser baleada por fuzil
No dia 18 de setembro de 2024, Valentina Simioni, 15, viajava com o pai, Michel Simioni, 40, ao Rio de Janeiro para tirar o visto americano. A família vive em Belo Horizonte. Mas o que era para ser uma comemoração acabou em tragédia. Ao errar um retorno e entrar no Complexo da Maré, o carro onde estavam foi alvo de disparos.
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Um dos tiros atingiu a coluna da adolescente. "Na hora que a bala perfurou meu corpo, senti muita dor, queimação e não conseguia sentir mais a minha perna. Não conseguia nem olhar para baixo, porque pensava que ela estava arrancada", lembra Valentina.
A jovem passou por diversas cirurgias e precisou usar uma bolsa de colostomia por quase três meses, pois o tiro também perfurou seu intestino. Hoje, mesmo sem a bolsa, convive com algumas sequelas: sente dores constantes e perdeu parte da sensibilidade na perna direita.
Dores, sequelas e injeções mensais
Apesar da recuperação, Valentina enfrenta uma rotina de tratamentos para amenizar as dores neuropáticas (crônica). "Ela toma vários medicamentos, incluindo antidepressivos, e precisa fazer fisioterapia diariamente", afirma Michel Simioni, pai da adolescente.
A lesão na quinta vértebra lombar (L5) resultou no rompimento do nervo ciático, causando dores intensas e alterações na sensibilidade. Para aliviar o quadro, ela passa por um procedimento quinzenal de bloqueio anestésico. "Essa aplicação é feita na coluna, com grande quantidade de corticoides, mas tem que ser em bloco cirúrgico porque o risco é alto", explica o pai.
Fiquei com medo de morrer, porque eu não sabia como eu estava, qual que era a arma e onde que tinha sido o tiro.
Valentina Simioni, 15, estudante baleada no Complexo da Maré - RJ
O neurocirurgião Wuilker Knoner explica que tiros na região lombar podem causar danos severos e permanentes. "A raiz nervosa de L5 controla os músculos da perna e do pé. Uma lesão pode resultar em fraqueza, alteração na sensibilidade e dor crônica", afirma Knoner.
Fragmentos do projétil. "Na tomografia da coluna lombossacra aparecem fragmentos do projétil na coluna sacral (logo abaixo L5). Provavelmente o tiro passou pela coluna e foi para dentro do abdome", diz Knoner após analisar as imagens (abaixo) a pedido do UOL.
No caso de Valentina, não há um tratamento que reverta as sequelas, apenas formas de controlar a dor. Entre os procedimentos indicados estão medicamentos específicos para dor neuropática, fisioterapia intensiva e bloqueios anestésicos.
A recuperação dependerá da resposta ao tratamento e do tempo de adaptação do corpo. "A dor pode comprometer o dia a dia, afetando humor e cognição, por isso o tratamento é fundamental", explica Knoner.
Culpa e carro confundido: relembre o caso
No dia do ocorrido, Michel Simioni dirigia pelo Rio de Janeiro seguindo o GPS quando errou o caminho e entrou no Complexo da Maré. Ao perceber a movimentação de homens armados, acelerou para sair do local. O carro foi perseguido e alvejado.
Quando estávamos prestes a retornar à Avenida Brasil, um Honda HR-V azul emparelhou ao meu lado, já com um fuzil apontado para fora, e ordenaram que eu encostasse. Assim que vi a arma e percebi a saída próxima, minha reação foi acelerar. No mesmo instante, eles começaram a atirar. Desviei de um carro à minha frente, segui em frente e continuei acelerando para fugir. Eles dispararam entre oito e dez vezes.
Michel Simioni
Valentina esperou o pai escapar para dizer que foi baleada. Em vídeo postado recentemente nas redes sociais, em que a jovem começa dizendo "Maquie-se comigo enquanto eu conto como foi levar um tiro de fuzil", ela relembra que esperou o pai sair da comunidade para dizer que foi alvejada. "Ele [pai] perguntou: 'Pegou em você?' Como não sou burra, disse que não tinha pegado para ele conseguir sair da comunidade, se eu falasse que pegou ele iria ficar preso e nós dois iríamos morrer", conta a jovem na gravação, que tem mais de 79 mil curtidas no TikTok.
"Quando chegamos na Avenida Brasil, ela me disse: 'Papai, tomei um tiro'. Meu mundo desabou", relembra Michel. Desesperado, ele abordou uma viatura policial que levou a jovem ao hospital. Valentina passou 18 dias internada em estado grave. De acordo com o pai, o projétil foi removido e enviado à polícia, que confirmou ser uma munição de calibre .556, usada em fuzis e carabinas. "Alguns estilhaços do metal não conseguiram retirar, preferiram não mexer porque estavam em um local muito sensível na coluna", diz Michel.
Saber que resisti a um tiro de fuzil me faz ver a vida de outra maneira, foi realmente um milagre. Estilhaços ainda estão no meu corpo, mas não me incomoda em nada.
Valentina Simioni
Governador, Cláudio Castro (PL), estava no hospital em que a vítima foi socorrida. "Por coincidência, nesse mesmo momento, o governador estava inaugurando uma ala no Hospital Estadual Getúlio Vargas. Havia vários repórteres na porta, de diferentes emissoras de televisão. Quando ela chegou, todos já estavam filmando, levaram-na para dentro, e a notícia saiu em vários jornais no Brasil inteiro. Inclusive, o governador foi interpelado na hora para falar sobre segurança pública, e ninguém mais se importou com a inauguração", conta Michel.
Me sinto responsável pelo que aconteceu. A gente conhece o Rio, mas naquele momento de euforia, nem pensamos nas consequências. Quando minha filha tomou o tiro, estávamos no carro, cantando e comemorando o visto. Eram nove da manhã, a rua cheia, nunca imaginei. Depois, após investigações, soubemos que parei atrás de um carro escoltado - a amante de um traficante saindo da favela - e que uma milícia usava um carro parecido com o meu para assaltar bocas de fumo.
Michel Simioni, 40, pai de Valentina
Hoje, a jovem enfrenta uma luta diária contra as sequelas. Ela segue em tratamento para buscar qualidade de vida. "É um milagre ela estar aqui, mas o preço da sobrevivência é alto, ela está mancando e tem dificuldades para estudar por conta da dor que altera seu humor", diz o pai.
Sinto que minha vida mudou bastante, antes fazia muito esportes, era uma pessoa muito ativa, mas agora fico só por conta do meu tratamento, de fazer a fisioterapia, acupuntura e ir aos médicos.
Valentina Simioni