Vaga para 'abordar pedintes' revolta; anúncio é caso de aporofobia?

Um anúncio publicado por uma empresa terceirizada em sites de empregos oferecia vaga para assistente social com a função de afastar pessoas em situação de rua da frente de um shopping na Avenida Paulista, em São Paulo.

A publicação causou forte reação nas redes sociais —e muitos consideraram o caso um exemplo de "aporofobia", termo que define a aversão às pessoas pobres.

O que aconteceu

Uma vaga atribuía a um assistente social a função de afastar pessoas em situação de rua da frente do shopping. A publicação foi feita pela empresa Verzani & Sandrini, com atuação no entorno do Shopping Pátio Paulista, na Avenida Paulista, em São Paulo. O anúncio usava expressões como "tirar do foco do cliente".

A descrição também exigia formação em serviço social, registro ativo no conselho de classe e perfil de liderança. O profissional deveria abordar "pedintes, menores e pessoas em situação de rua para tirá-los do foco do cliente" e, segundo o texto, "posteriormente fazer uma ação social com a prefeitura".

O anúncio foi criticado por tratar pessoas em vulnerabilidade como obstáculo visual. O padre Júlio Lancellotti, conhecido por seu trabalho com pessoas em situação de rua, criticou o anúncio em suas redes sociais. Ele classificou a vaga como um caso de "aporofobia institucional", termo que define a aversão ou rejeição sistemática às pessoas pobres.

O que é aporofobia

Aporofobia é o preconceito contra pessoas pobres por sua condição de vulnerabilidade. O termo foi cunhado no fim dos anos 1990 pela filósofa espanhola Adela Cortina, professora da Universidade de Valência. Deriva do grego áporos (sem recursos) e phobos (aversão).

Segundo artigo do pesquisador australiano Nick Haslam, publicado na revista Social Science Space, a aporofobia é uma rejeição a pessoas pobres que parte da ideia preconceituosa de que elas "nada têm a oferecer" ao sistema de consumo. A ideia se aplica a atitudes, discursos e políticas que buscam invisibilizar ou afastar os pobres do espaço público. "Turistas e investidores estrangeiros são bem-vindos. Mas refugiados e pobres são hostilizados porque não têm como retribuir a generosidade que se espera", explica Haslam.

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Violação de direitos

Para o advogado Ilmar Muniz, especialista em direito penal e constitucional, a vaga fere princípios constitucionais como dignidade e igualdade. "Quando uma empresa contrata alguém com a função de retirar pessoas em situação de rua do 'foco dos clientes', ela está tratando essas pessoas como um incômodo, não como cidadãos com direitos."

Segundo ele, não é necessário que haja violência física para haver responsabilização jurídica. "Empresas podem responder por danos morais coletivos e por violar direitos difusos." Ele classifica o caso como uma forma de exclusão social disfarçada de gestão urbana.

O uso de assistente social com essa finalidade também é considerado inadequado. "É um desvio de finalidade que contraria o código de ética da profissão", disse Muniz.

O que dizem o shopping e a empresa terceirizada

Em nota, o Shopping Pátio Paulista informou que abrirá uma sindicância para apurar os fatos e impedir que esse tipo de situação volte a acontecer. E afirma que não teve conhecimento da descrição da vaga divulgada, "feita por uma empresa terceirizada, responsável pela contratação de profissionais de diversos segmentos". Na nota, diz que não compactua com esse tipo de abordagem. O shopping reitera ainda que a descrição da vaga não condiz com os valores da empresa, que preza pelo respeito às pessoas.

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O shopping diz que as vagas de assistência social existem para oferecer acolhimento humanizado às pessoas em vulnerabilidade social que buscam o estabelecimento como um pedido de ajuda. E, em função disso, firmou um convênio com o programa "Cidade Protetora", da prefeitura de São Paulo, para que essas pessoas possam ser encaminhadas para projetos sociais nos quais poderão ter uma assistência adequada.

A Verzani & Sandrini, que presta serviços para o shopping, afirmou, em nota, que o conteúdo da vaga não reflete seus valores e que o anúncio foi gerado "de forma automatizada". Em nota, a empresa disse que solicitou a retirada do anúncio e está revisando seus fluxos internos de comunicação e recrutamento. "O conteúdo foi divulgado de forma inadequada por meio de um sistema automatizado de replicação", afirmou.

A empresa negou que o shopping tenha participado da criação ou validação do conteúdo. Reforçou também seu compromisso com práticas humanizadas. "Atuamos com respeito, acolhimento e compromisso com a dignidade humana." A companhia disse estar à disposição para colaborar com a apuração dos fatos. A nota cita ainda o programa "Nosso Cuidar", voltado ao acolhimento de colaboradores e familiares.

Código de ética

Em nota, o Cress-SP (Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo) informou, em nota, que tomou conhecimento da vaga anunciada e está tomando as medidas cabíveis. E recomendou à empresa que o anúncio seja suprimido de todos os meios de comunicação.

"O Cressp-SP tomou conhecimento da vaga anunciada e está tomando as medidas cabíveis, considerando que o cargo em questão fere as diretrizes do exercício profissional da categoria, amalgamado no Código de Ética do/a assistente social", afirma na nota. E justifica: "em razão de conter elementos que contrariam os dispositivos da profissão, sobretudo os princípios éticos como a defesa intransigente dos direitos humanos e a eliminação de toda e qualquer forma de preconceito".

O Código de Ética do Assistente Social proíbe expressamente o uso da profissão como instrumento de repressão, exclusão ou controle social. Entre os princípios fundamentais está o "compromisso com a eliminação de todas as formas de preconceito" e a atuação voltada à "universalização dos direitos sociais". A função de abordar pessoas em situação de rua para fins de remoção ou invisibilização é incompatível com esses princípios. O documento também orienta que profissionais devem se recusar a cumprir ordens que contrariem os valores da profissão ou coloquem em risco a dignidade dos atendidos.

74 comentários

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Enrico

Em países como Inglaterra e Estados Unidos é proibido a prática de pedir esmolas. Existem lugares próprios para acolhimento de carentes, assim como existem muitos no Brasil.  Pedir esmola virou emprego de muitos. Assim como vendedores de sinal, tbm proibidos na maioria dos países de primeiro mundo. Existem lugares próprios para doações, assim como existem lugares próprios para receber essas doacoes. Ordem e organizacao desses fatores sao a unica forma de fazer isso funcionar verdadeiramente. O resto é falacia.

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Diego Bispo dos Santos

Na Dinamarca Mendigagem é crime. Aqui no Brasil virou profissão. Aeroporto, Metrô, porta de Banco e restaurantes. É, a história mais triste possível. E, dependendo do lugar eles ficam agressivos com negativa!! 

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Carlos Jorge dos Santos

Tem muita gente gritando, mas só liga para os pobres quando chega o natal e um brinquedo de plástico doado diminui a culpa.

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