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Um ano após morte de ditador, Líbia ainda tem US$ 150 bilhões da era Gaddafi perdidos em reservas internacionais

Morte do ex-ditador Muammar Gaddafi faz um ano - Anis Mili/Reuters
Morte do ex-ditador Muammar Gaddafi faz um ano Imagem: Anis Mili/Reuters

Larissa Leiros Baroni

Do UOL, em São Paulo

20/10/2012 06h00

Mesmo um ano após a morte do ditador líbio Muammar Gaddafi, lembrado neste sábado (20), a Líbia ainda tem mais de US$ 150 bilhões (aproximadamente R$ 304 bilhões) perdidos em reservas internacionais, segundo o diretor de relações internacionais do Instituto da Cultura Árabe, Murched Taha. Dinheiro mais do que suficiente para levantar o país depois de mais de 43 anos de degradação.

"Enquanto a Líbia possui US$ 150 bilhões para uma população de seis milhões de pessoas, as reservas internacionais brasileiras somam cerca de US$ 300 bilhões, só que para uma população de quase 200 milhões de pessoas, ou seja, 33 vezes maior", compara ele, que arrisca dizer que a Líbia, de posse dessa fortuna toda, pode ser considerada uma das nações mais ricas do mundo. "A questão é que muitos bancos estão colocando obstáculos para o resgate da verba. Há ainda parte desta verba que nem se sabe onde está."

A riqueza líbia, como explica Taha, é oriunda majoritariamente das reservas de petróleo do país, que estão na nona colocação mundial. Mas, segundo ele, durante a gestão de Gaddafi, a verba atendia exclusivamente aos interesses do ditador e sua família. "Em um ano, o filho de Gaddafi conseguiu gastar 133 milhões de libras esterlinas (aproximadamente R$ 432 milhões) durante uma viagem para Londres, de acordo com relatos de sua ex-namorada", conta.

Raio-X da Líbia

  • Nome oficial: República Árabe Líbia popular e Socialista
    Localização: África do Norte
    Nacionalidade: líbia
    Capital: Trípoli
    Divisão: três províncias
    Língua: árabe
    Religião: islâmica (sunitas)
    Moeda: dinar líbio
    Geografia: grandes áreas de deserto. Faz fronteira com o Egito, a leste (1.150 km), Tunísia (459 km) e Argélia no oeste (982 km)
    Clima: verões quentes e invernos suaves, com noites frias. O deserto tem dias quentes e noites frias
    Idioma: árabe
    Área: 1.759.540 quilômetros quadrados
    População: 6.597.960 (julho 2011)
    Principais cidades: Banghazi, Sabha, Misratah, Darnah, Zawia, Gharyan, Sirte
    Indústrias: petróleo, processamento de alimentos, têxteis, artesanato, cimento
    Recursos naturais: petróleo, gás natural, gesso

O cenário líbio agora é outro. Com a retomada rápida da produção de petróleo, que já atingiu um nível parecido com o anterior ao conflito de 2011, este rico país petrolífero dispôs em 2012 de um orçamento de US$ 56 bilhões, o mais alto de sua história. "A Líbia começa a construir a figura do Estado, que antes não existia, a partir de um parlamento livre e democrático, eleito pela própria população, que também já escolheu um primeiro-ministro", descreve Taha.

Eleições

Nestes últimos 12 meses, a Líbia realizou a primeira eleição parlamentar em 48 anos e ainda que não tenha sido obrigatória contou com a participação de 60% da população. Mas, para Carlos Eduardo Vidigal, professor de história da UnB (Universidade de Brasília) e doutor em relações internacionais, essas mudanças não significam a construção de uma democracia. "É fato que a Líbia está um pouco melhor em termos de liberdade, mas as práticas políticas ainda não seguem todos os princípios democráticos", diz. Na opinião dele, falta maior grau de democracia interna e maior grau de dependência externa, fator que pode parecer paradoxal, porém importante para um país que almeja democracia.

Taha reconhece ser difícil atingir a estabilidade desejada em um ano após um caos institucional e uma guerra civil que destruiu toda a infraestrutura do país. "Houve progressos evidentes e importantes, como o fim da figura do ditador e a volta do poder da lei. Mas ainda há muito o que fazer", afirma ele, que cita o recolhimento das armas pesadas que durante a guerra foram distribuídas excessivamente aos civis.

Desafio já reconhecido pelo próprio governo líbio, que tem investido em campanhas pelo desarmamento e fim das milícias no país. Na capital Trípoli, mais de 100 pessoas entregaram armas leves, médias e pesadas, assim como munições que vão desde balas até foguetes de tanques. Já em Benghazi, foram recolhidas mais de 200 armas. A Líbia reconhece ser apenas uma pequena parte das armas que foram roubadas dos arsenais do ex-ditador Gaddafi em 2011, no entanto, diz ser o primeiro passo do desarmamento de um país onde a insegurança leva os habitantes a se protegerem por conta própria.

Ataque ao consulado dos EUA

E essa violência ganhou ainda mais repercussão com o ataque ao consulado dos Estados Unidos em Benghazi, que provocou a morte do embaixador norte-americano Christopher Stevens. Em setembro deste ano, a mesma cidade também se transformou em um campo de batalha, após as tropas do governo e milicianos governistas terem atacado bases mantidas por milícias islâmicas. A explosão de violência, segundo autoridades locais, foi a maior já vista nas ruas do país desde a deposição do regime de Gaddafi.

"A França, por exemplo, levou cerca de nove anos para reestabelecer sua segurança após a Revolução Francesa. Não há uma mágica para acabar com a violência de um país que viveu por oito meses o caos de uma guerra civil", aponta Taha, que diz existir ainda duas ou três cidades líbias pró-Gaddafi. "Essa violência também está atrelada à presença estrangeira no país. Segundo uma pesquisa, mais de 90% dos atos terrorista têm como pano de fundo a questão territorial ou a presença dos ocidentais em países muçulmanos", acrescenta Vidigal.

Apesar de o tenente-coronel americano Andrew Wood, que chefiou uma equipe de segurança em Trípoli, ter dito que a presença da Al Qaeda na Líbia cresce a cada dia, tanto Taha como Vidigal não relacionam a violência na era pós-Gaddafi com o fortalecimento da rede extremista no país. "Isso é conversa. Tudo que existe de negativo é culpa Al Qaeda. O grupo nunca teve força na Líbia. A questão é que no país ainda existe partidários do Gaddafi, que sabem que quem derrubou o ex-ditador foram os Estados Unidos", relata o diretor do Instituto da Cultura Árabe.

Ainda assim os Estados Unidos reservaram US$ 8 milhões para ajudar o novo governo líbio a criar um comando de elite dedicado a combater extremistas islâmicos como os que causaram a morte do embaixador americano. Segundo o jornal "The New York Times", o governo de Barack Obama obteve a permissão do Congresso para redirecionar o orçamento de ajuda militar ao Paquistão para desenvolver uma força de elite líbia que poderia chegar a ter 500 membros.

Situação do país

Mas a violência não foi o único legado deixado por Gaddafi. "Além de um Exército marginalizado, ele conseguiu durantes seus 43 anos de comando deteriorar a educação e a saúde do país. Neste período, os líbios tinham que recorrer aos hospitais de países vizinhos para ter um atendimento médico decente", aponta Taha, que inclui esses dois quesitos na lista de prioridades do novo governo do país. Para Vidigal, a Líbia não pode perder o respeito à soberania nacional imposto na era do ex-ditador.

O novo governo deve considerar também a reativação da Justiça, em meio a críticas de organizações internacionais para a defesa dos direitos humanos que denunciam atos de tortura e prisões arbitrárias realizadas pelos ex-rebeldes. As condições de detenção de Seif al-Islam, filho de Gaddafi, preso desde novembro de 2011, também são uma fonte de preocupação da comunidade internacional. Trípoli insiste em julgá-lo, apesar do mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade.

Um ano após Gaddafi

A celebração do aniversário da morte do ex-didator Muammar Gaddafi ocorre no momento em que o novo primeiro-ministro, Ali Zeidan, prepara a composição de seu governo, que será apresentado em duas semanas para aprovação do Congresso Geral Nacional, a mais alta autoridade política do país, formada durante as eleições de 7 julho deste ano.

MUAMMAR GADDAFI EM IMAGENS

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Zeidan, um candidato independente, derrotou o candidato apoiado pelo Partido da Justiça e Construção, que é ligado à Irmandade Muçulmana, e substituirá Abdelrahim al-Kib, cujo governo conduziu um primeiro período de transição turbulenta, mas que tem o mérito de ter organizado as primeiras eleições livres no país.

"A decisão do parlamento líbio comprova que a Líbia tem seguido um caminho diferente da Tunísia, do Egito e de Marrocos. Ou seja, que a política segue em direção a uma autonomia da religião", afirma Taha. "E este é um fator que deve ser bastante comemorado."

Mistérios da morte de Gaddafi

Recentemente, a organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch apresentou novas provas do assassinato de Muammar Gaddafi após sua captura, e da execução de dezenas de seus seguidores em poder dos rebeldes, no relatório intitulado "Morte de um ditador: Vingança sangrenta em Sirte".

No documento de 50 páginas, a organização detalha as últimas horas de Gaddafi, as circunstâncias de sua morte e a execução de vários membros de seu comboio, com base em testemunhos e imagens gravadas com celulares.

"Os resultados da nossa investigação levantam questões sobre as afirmações das autoridades de que Muammar Gaddafi morreu em um tiroteio e não após sua captura", destaca Peter Bouckaert, diretor da Human Rights Watch. Há provas ainda de que milicianos da oposição executaram sumariamente ao menos 66 membros do comboio do ex-ditador capturados em Sirte.

Após a divulgação deste relatório, os Estados Unidos renovaram seu apelo para que a Líbia investigue as circunstâncias da morte do ditador.

Principais momentos da era pós-Gaddafi na Líbia

Outubro/2011Morre o ex-ditador líbio Muammar Gaddafi
Outubro/2011Libertação da Líbia é oficializada
Julho/2012Primeira eleição parlamentar desde 1964
Agosto/2012Conselho de Transição entrega poder ao Congresso Nacional líbio
Agosto/2012Comemoração do 1º aniversário da libertação do país do comando de Gaddafi
Setembro/2012Ataque ao Consulado dos EUA em Benghazi
Outubro/2012Ali Zidan é eleito primeiro-ministro